quarta-feira, 26 de abril de 2017

Frederico Lourenço sobre Atenas e Jerusalém


Quem se encontrava em Portimão na sexta-feira passada, teve a sorte de poder de assistir, no confortável auditório do Museu Municipal, à excelente conferência de Frederico Lourenço intitulada "Bíblia, História e Filosofia". 

Não será exagero afirmar que tanto os crentes como os não-crentes na mensagem bíblica, tiveram a oportunidade de descobrir muitos aspectos interessantes, e até então ocultos, para quem nunca teve a possibilidade de ler as palavras do Novo Testamento no original grego. Com o seu gigantesco trabalho de tradução, Frederico Lourenço tem prestado um inestimável serviço a todos os que não desistem de compreender a verdadeira mensagem dessa obra marcante da história da humanidade, sem deixar de nos permitir apreciar o seu real valor literário. 

A tradução de Frederico Lourenço do Novo Testamento não está comprometida com qualquer tipo de abordagem ou interpretação, procurando apenas aproximar-nos tanto quanto possível das palavras originais e deixando em aberto as mais variadas interpretações, sejam elas teológicas, filosóficas ou estritamente históricas. Dado que as abordagens essencialmente teológicas têm sido largamente difundidas, Frederico Lourenço apresentou na sua conferência várias ideias que podem orientar uma leitura histórica e filosófica.

Entre os muitos aspectos interessantes, refiro aqui apenas um. Talvez poucas pessoas saibam que, em toda a Bíblia, a palavra "filosofia" ocorre apenas uma vez e que a palavra "filósofos" ocorre também uma só vez. Em ambas as ocorrências fica bem patente o quanto Atenas e Jerusalém estavam inicialmente de costas voltadas, como refere Frederico Lourenço numa das suas numerosas e sempre instrutivas notas, citando o pensador cristão do século II, Tertuliano.    

A palavra "filósofos" ocorre em Actos dos Apóstolos (17:18), escrito pelo evangelista Lucas, a propósito da visita de Paulo a Atenas. E diz-se mesmo que filósofos são esses: os epicuristas e estoicos. O que não é de estranhar, dada a influência destas duas escolas filosóficas durante boa parte do chamado período helenístico. Neste caso, o que ficamos a saber é que o ambiente intelectual em Atenas era adverso à mensagem cristã e que esses filósofos encaravam Paulo como um fala-barato. A palavra surge na seguinte passagem.

    Quando os judeus de Tessalónica souberam que também em Bereia a palavra de Deus fora anunciada por Paulo, para lá se dirigiram, provocando e agitando as multidões. De imediato, os irmãos mandaram Paulo em direção ao mar; Silas e Timóteo ficaram lá. Os acompanhantes levaram Paulo a Atenas e, tendo recebido a incumbência de transmitir a Silas e a Timóteo que fossem ter com Paulo o mais rapidamente possível, regressaram. 
    Estando Paulo em Atenas à espera deles, irritava-se-lhe o espírito ao ver quão idólatra era a cidade. Discutia na sinagoga com os judeus e com os que veneravam a Deus,  assim como diariamente na praça pública com quem ele lá encontrava.
    Alguns filósofos epicuristas e estoicos conversavam com ele. Uns diziam: "O que queria dizer este fala-barato?" Outros diziam: "Parece ser um pregoeiro de divindades estranhas." Isto porque Paulo anunciava a boa-nova de Jesus e da ressurreição. Levando-o com eles até ao Areópago, dizem-lhe: "Podemos saber que nova doutrina é esta, por ti falada?" Pois lanças ideias estranhas contra os nossos ouvidos. Queremos saber, portanto, o que isto pretende ser." Todos os atenienses e os estrangeiros residentes em Atenas noutra coisa não se alegravam que não fosse dizer ou ouvir algo de novo.
  Paulo, de pé no meio do Areópago, disse: "Homens atenienses! Em tudo eu vejo que sois muito religiosos. Percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um altar no qual fora escrito:
    A um desconhecido deus.
   Aquilo que, desconhecedores, venerais, é isso que eu vos anuncio.
Actos dos Apóstolos, 17:12-23

Frederico Lourenço adverte-nos, num texto que entretanto escreveu, que o autor dos Actos dos Apóstolos nunca leu sequer uma linha das cartas de Paulo. Ainda assim, a passagem não deixa de fazer jus à fama de Paulo como orador impressionantemente sagaz e persuasivo — um aspecto que também impressionou Frederico Lourenço, como sublinhou na sua conferência. Veja-se como, nesta passagem, Lucas relata a resposta de Paulo a quem acusa o apóstolo de ser fala-barato. Paulo inverte inteligentemente a direcção da acusação ao sugerir que os idólatras são os atenienses, e que é  precisamente ele, Paulo, quem os convida a não serem tão idólatras e a venerarem o deus que já eles mesmos pressentiam, sem o saber nomear: o desconhecido deus.  

Quanto à palavra "filosofia", ela ocorre na Carta aos Colossenses (2:8), cuja autoria, por vezes atribuída a Paulo, permanece muito duvidosa, como esclarece Frederico Lourenço na sua introdução a esta epístola. Também aqui encontramos um contexto acusatório. Mas a acusada é agora a filosofia, cujo "discurso convincente" leva ao "logro" e não à verdade. Esta surge da autoridade da palavra de Cristo e não da tradição filosófica. A passagem é a seguinte.

    Quero que saibais quão grande é a luta que travo por vós e por aqueles na Laodiceia, e por quantos não viram o meu rosto em carne, para que os seus corações fiquem encorajados, tendo sido ligados em amor e para toda a riqueza da abundante convicção do entendimento, para conhecimento do mistério de Deus, que é Cristo, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento.
   Digo isto, para que ninguém vos iluda com um discurso convincente. Se estou ausente pela carne, por outro lado estou convosco pelo espírito, alegrando-me e observando a vossa ordem e a firmeza da vossa fé em Cristo. 
   Por conseguinte, tal como recebestes de Cristo Jesus, o Senhor, caminhai nele, enraizados e edificados nele, fortalecidos na fé, tal como fostes ensinados, abundando em ação de graças. Vede para que ninguém seja vosso captor através da filosofia e do logro vazio segundo a tradição dos homens, segundo os princípios do mundo e não os de Cristo. Pois nele habita toda a plenitude da divindade corporalmente, e nele sois plenos — ele que é a cabeça de todo o poder e autoridade.  
                                                 Carta aos Colossenses, 2:1-10 

Mas ainda que a filosofia e o cristianismo primitivo estivessem de costas voltadas, a união entre Atenas e Jerusalém não deixou de se tornar um dos mais marcantes factos históricos do chamado mundo ocidental. Há quem diga que pertencemos a uma civilização de matriz judaico-cristã e há quem prefira dizer que se trata de uma matriz greco-romana. Talvez não fosse menos adequado falar antes de uma matriz greco-cristã.

Este foi apenas um pequeno apontamento entre tantas reflexões que a conferência de Frederico Lourenço despertou em quem teve a sorte de o ouvir. Resta-nos agradecer mais uma vez e esperar que volte em breve.


Aspecto do auditório um pouco antes do início da conferência


NOTA: Uma passagem deste texto foi reescrita depois de ler o texto para que aponta a ligação inserida.

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