domingo, 28 de fevereiro de 2016

O que é a filosofia analítica?

Uma entrevista radiofónica com a filósofa espanhola Pepa Toribio. Informativa e esclarecedora: a filosofia analítica não é um programa nem sequer uma espécie de corpus filosófico e também não é um conjunto articulado de teses. A filosofia analítica não é, como alguns pensam, apenas filosofia da linguagem, pois ocupa-se de todos os tipos de problemas filosóficos: da ética à metafísica e à teoria do conhecimento; da filosofia política à estética; da teoria do valor à filosofia da mente. A filosofia analítica é, sobretudo, um estilo de filosofar e permite também elucidar os mais diversos aspectos da vida prática e social (veja-se o exemplo da intervenção decisiva da filósofa Adèle Mercier na discussão sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo no Canadá).

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Falar cantando ou cantar falando?

Não faço a mais pequena ideia de qual seja o significado dos poemas de Edith Sitwell que fazem parte de Façade. Também não consigo dizer se a canadiana Barbara Hannigan está aqui a cantar ou se está simplesmente a ler os poemas de forma expressiva. E, como seria de esperar, também não sei se a música de William Walton capta adequadamente o sentido das palavras de Sitwell. Mas sei que me soa tudo de forma estranhamente cativante. Será que era algo do género que Clive Bell e Roger Fry tinham em mente (a propósito, Edith Sitwell foi várias vezes retratada pelo pincel de Fry) quando falavam da emoção estética causada pela forma significante? Será que o significado das palavras de Façade é irrelevante e apenas é esteticamente significativo o modo como as formas sonoras se combinam e organizam?


«A componente representacional de uma obra de arte pode ser ou não nociva, mas é sempre irrelevante. Para apreciarmos uma obra de arte não é necessário trazermos connosco nenhum elemento da vida, nenhum conhecimento das suas ideias ou questões, nenhuma familiaridade com as suas emoções. A arte transporta-nos do mundo da actividade humana para um mundo de exaltação estética. Por instantes alheamo-nos dos interesses humanos; suspendem-se as nossas memórias e expectativas, somos elevados acima do fluxo da vida. O matemático puro, absorto nos seus estudos, conhece um estado mental semelhante, se não mesmo idêntico», escreve Clive Bell no seu livro Arte.

Será Façade, uma obra recebida de forma pouco consensual quando estreou em 1922, uma boa ilustração da perspectiva de Bell e Fry?

Para quem preferir uma interpretação com uma voz mais familiar, sugiro o disco da DECCA, com Jeremy Irons e direcção da orquestra de Riccardo Chailly (a imagem da capa deste disco é provavelmente uma alusão à apresentação de estreia da obra, em que Sitwell leu os seus poemas com um megafone, escondida atrás do palco).  


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Definiófobos de todo o mundo, acautelai-vos!

A Cigarra Filosófica de Bernard Suits desafiando os definiófobos, em particular os wittgensteinianos: "jogar um jogo é uma tentativa voluntária de superar obstáculos desnecessários".



Silva: Mas se queres ir para C, por que diabos defendes uma regra que te impede de seguir a rota mais rápida e conveniente?
Júnior: Ah, mas repara que não tenho qualquer interesse particular em estar em C. Não é esse o meu propósito, excepto de um modo secundário. O meu propósito fundamental é mais complexo. Trata-se de “ir de A para C sem passar por B”. E não tenho como realizar esse propósito lá muito bem se passar por B, certo?
S: Mas por que razão queres fazer isso?
J: Quero fazê-lo antes que o Rebelo o faça, entendes?
S: Não, não entendo. Isso não explica coisa alguma. Por que haveria o Rebelo, seja ele quem for, de querer fazer isso? Presumo que me dirás que ele, como tu, tem apenas um interesse secundário em estar de todo em C.
J: É isso mesmo.
S: Bom, se nenhum de vós quer realmente estar em C, então que diferença poderia fazer o facto de um ou outro chegar lá primeiro? E por que razão, pelo amor de Deus, haveriam de evitar B?
J: Deixa-me fazer-te uma pergunta. Por que razão queres ir para C?
S: Porque vai haver um bom concerto em C, e quero assistir a esse concerto.
J: Porquê?
S: Porque gosto de concertos, evidentemente. Não será essa uma boa razão?
J: Uma das melhores que há. E eu gosto de, entre outras coisas, tentar chegar a C a partir de A sem passar por B antes que o Rebelo o faça.
S: Bom, eu não. Portanto, por que razão me haveriam de dizer que não posso passar por B?
J: Oh, estou a ver. Devem ter pensado que estás na corrida.
S: Na quê?

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Estrelas que brilham depois de extintas

Blackstar foi o obituário musical que a mais brilhante rockstar de sempre criou para anunciar o seu próprio apagamento. Tal como havia feito há mais de quatro décadas com a revelação da morte metafórica do seu alter ego artístico — Ziggy Stradust, a rockstar alienígena —, David Bowie regressou artisticamente ao sempre difícil tema da despedida. Só, que desta vez, tratou-se da mais difícil de todas: a irrevogável. Uma despedida assim é caso único na história da música rock.


David Bowie é frequentemente referido como alguém que desafiou estereótipos, preconceitos e convenções sociais, contribuindo como poucos para a emancipação da então emergente cultura popular urbana, que tinha o rock and roll como principal elemento de afirmação. E não deixa de ser curioso que tenha sido um verdadeiro catalisador de influências artísticas como Bowie — ele mesmo abraçou influências tão diferentes como a mímica, o teatro de vaudeville, o jazz, os musicais, o cinema, a literatura e as artes plásticas — a mergulhar no universo do rock para lhe oferecer o seu primeiro, mais vivo e mais honesto auto-retrato. Ao dar vida, tanto em disco como nos palcos, a personagens como Ziggy Stardust e os Spiders From Mars — uma rockstar andrógina que veio de outro planeta com a sua banda e que acabou por ser vítima dos excessos do seu próprio sucesso —, conferiu ao rock system a importância e o estatuto que legitimam a auto-referencialidade.


É certo que os Mothers of Invention de Frank Zappa já olhavam por vezes ironicamente para a cultura e a iconografia rock de que eles próprios faziam parte. Só que, diferentemente da perspetiva na primeira pessoa de Bowie, a ironia de Zappa mostra um olhar distanciado, típico da perspectiva na terceira pessoa. No caso de Bowie, é o rock system a olhar-se a partir de dentro, sem qualquer intenção irónica. Por isso se tornava difícil destrinçar se era Bowie ou se era Ziggy a manifestar-se. A personagem confundiu-se a tal ponto com a pessoa que lhe deu corpo, que esta teve de declarar publicamente a morte da personagem para resgatar a sua identidade. É por isso que a música de Bowie da fase Ziggy Stardust soa tão poderosa, desesperada e paradoxalmente autêntica. Parece que Bowie está, sem o saber, a ilustrar o que Fernando Pessoa exprimiu na sua Autopsicografia. Apesar de, ao vestir a pele e a alma de Ziggy, o artista estar a fingir, o fingimento cola-se com tal perfeição ao fingidor a ponto de este sentir o fingimento como dolorosa realidade. Foi manifestamente por isso, que depois da morte de Ziggy, Bowie se tornou uma pessoa diferente e a sua música mudou também de tom. Até a banda Spiders From Mars foi despedida e Bowie não voltou a tocar com ela. Foi por mudar várias vezes de pele que alguns lhe chamaram camaleão. Mas as peles de Bowie são mais parecidas aos heterónimos de Pessoa do que à aparência do camaleão, pois as diferentes peles de Bowie correspondem também a personalidades artísticas completamente diferentes. Bowie não muda só por fora mas por dentro também.

Ainda assim, tudo isso pode ser musicalmente desinteressante. O que importa mesmo é se a música que acompanha tais personagens vale realmente a pena ser ouvida. Ora, é acima de tudo como músico que Bowie merece toda a atenção.

Não devia haver qualquer dúvida que, sem David Bowie, a história da música rock teria sido muito diferente. E muitíssimo mais pobre. Poucas figuras foram individualmente tão marcantes para a história da música rock como Bowie. Talvez só Bob Dylan e Frank Zappa tenham individualmente uma importância equiparável à de Bowie. Nem Elvis Presley, que nunca se aproximou sequer da criatividade e da sofisticação musical de Bowie, nem Jimi Hendrix, cujo génio foi quase todo aplicado à guitarra, nem Jim Morrison, que foi sobretudo a voz carismática da criatividade colectiva dos Doors, são casos comparáveis. Lennon e McCartney, por sua vez, estão muitíssimo longe de ser individualmente o que foram como dupla genial. E o mesmo pode ser dito de outras duplas de peso como Jagger e Richards, Simon e Garfunkel, Page e Plant ou Gilmour e Waters.

Sem dúvida que numa carreira tão longa e tão musicalmente diversificada como a de Bowie, é possível encontrar períodos inteiros de música desinteressante. Foi o que aconteceu durante os anos 80 e boa parte dos 90 do século passado, em que Bowie precisou de ganhar a vida e optou pelo caminho mais curto. Não vou a ponto de dizer que sucessos como Let's Dance, Under Pressure, Dancing in the Streets, Modern Love, China Girl, Absolute Beginners ou Blue Jean são deploráveis. Mesmo em canções banais como estas há um toque especial — que mais não seja a voz única e inconfundível de Bowie —, mas o mundo não ficaria mais pobre sem canções como estas.

Para uma correta avaliação da importância musical de Bowie, é preciso ter em conta que houve um Bowie roqueiro (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars), um Bowie esteta (Hunky Dory), um Bowie progressivo (Space Oddity), um Bowie jazzy (Aladin Sane), um Bowie bluesy (Diamond Dogs) um Bowie funky e soul (Young Americans), um Bowie electrónico, experimental e ambiental (Low, Heroes, Lodger) um Bowie metálico (The Man Who Sold the World), um Bowie new wave (Scary Monsters) e, claro, também um Bowie comercial (Let's Dance, Tonight). Bowie é tudo isso, por vezes misturado, mas sempre à sua maneira, sem nunca se deixar aprisionar por qualquer desses géneros. Não vale, por isso, a pena procurar nele um exemplar puro de qualquer desses sub-géneros.

Mas onde procurar o melhor, e como evitar o pior Bowie? Penso que o melhor está todo nos anos 70  — de The Man Who Sold the World a Scary Monsters, este já gravado no ano de 1980 — e que os anos 80 e parte dos 90 são de evitar. Só já na recta final da sua vida, Bowie volta a fazer música à sua própria altura, em particular o último Blackstar.

Parece-me adequado encarar os seus discos anteriores a 1980 como uma sucessão de trilogias. Os seus três primeiros álbuns — David Bowie, Space Oddity e The Man Who Sold the World — têm algumas boas canções, em especial os dois últimos, mas são apenas um tímido prenúncio da explosão criativa que haveria de se revelar na fantástica trilogia seguinte, constituída por Hunky Dory, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars e Aladdin Sane. Os dois primeiros são, quanto a mim, os melhores álbuns de Bowie e estão entre os melhores discos da história da música rock.


Hunky Dory está recheado de belíssimas canções, com melodias incomuns mas memoráveis. Entre elas destacam-se Life on Mars, com as suas linhas melódicas irresistivelmente ascendentes, os arranjos elegantes do guitarrista Mick Ronson — vejam-se não apenas as cordas mas também os sopros que por vezes se assomam discretamente com a suave batida da tarola aveludada em eco a marcar o compasso —, o magistral piano de Rick Wakeman e a voz lírica de Bowie. Changes, por sua vez, parece tirada de um musical, com Bowie a cantar ora como se fosse um narrador em palco ora como actor. É, de resto, curioso verificar como já aqui Bowie revela o seu fascínio pelas múltiplas personalidades. Mas há ainda a estranhamente tocante Quicksand, em que Bowie confessa, com uma honestidade surpreendente, a sua perigosa proximidade das areias movediças formadas por uma mistura de ideias esotéricas da Aurora Dourada com um cepticismo irracionalista e uma altivez profética nietzscheana. Salva-se a corajosa confissão da sua atracção pelo abismo a que, no fundo, tenta resistir: Don't believe in yourself, don't deceive with belief / Knowledge comes with death's release, canta ele no resignado e encantador refrão. Expôr cruamente tão desprezíveis fraquezas — sobretudo quando apresentadas como tal — não é para qualquer um. Há também The Bewlay Brothers, uma misteriosa balada entre o folk e o rock progressivo, com uma letra estranhíssima, alegadamente um repositório de memórias e de imagens soltas de uma infância partilhada com o seu muito querido meio-irmão mais velho, que padecia de esquizofrenia e que viria anos mais tarde a atirar-se mortalmente da janela da instituição em que estava internado. E ainda sobram o brilhante trio de piano, guitarra eléctrica e voz de Eigth Line Poem, a eloquente pregação musical de Oh! You Pretty Things, em que mais uma vez dá voz à ideia nietzscheana de um futuro homem superior.


Depois de um disco assim era difícil esperar ainda melhor, mas foi isso mesmo que aconteceu com The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars, uma sucessão de canções tão diferentes mas complementares entre si. Apesar da aparente simplicidade de cada canção, o álbum é um verdadeiro cardápio do melhor que o rock tem para oferecer: a poderosa e incisiva guitarra eléctrica de Ronson, que energicamente irrompe apenas quando é necessário (Soul Love, Moonage Daydream, Ziggy Stardust), por vezes em contraste com a aveludada guitarra acústica de doze cordas de Bowie (Starman, Rock 'n' Roll Suicide); o sax esporádico e insinuante de Bowie (Soul Love); o piano imponente e solene (Five Years, Lady Stardust), tocado ora por Bowie ora por Ronson; os brilhantes arranjos de Ronson, que conferem a algumas canções uma discreta envolvência orquestral e um lirismo invulgares (Five Years, Moonage Daydream, Starman, Rock 'n' Roll Suicide). E acima disto tudo está a voz de Bowie com os seus graves profundos e os seus agudos fulgurantes, constantemente entre o introspectivo e o descarado, entre o épico e o lírico. Como se diz na contracapa do disco, é para ser ouvido com o volume no máximo. Não há que ter receio de o som sair empastado, pois cada instrumento continua ali bem definido. Apenas se passa a sentir melhor todo o poder e expressividade desta música. Em minha opinião é um dos melhores discos rock de sempre.

Dificilmente o disco seguinte não deixaria algo a desejar. Mesmo não estando à altura dos dois anteriores, Aladdin Sane tem boa música. Na verdade percorre ainda os mesmos caminhos musicais que os anteriores, só que é menos focado e mais disperso. E também acrescenta um toque jazzístico aqui e ali, dado sobretudo pelo novo pianista Mike Garson e pela maior intervenção do sax de Bowie.  Há neste álbum um punhado de boas canções, embora nunca tão intensas como nos álbuns que o precedem. Entre elas conta-se Drive-In Saturday, a lembrar as paródias musicais de Zappa — os coros, por exemplo. Time, por sua vez, parece tirada de uma performance de cabaret e Lady Grinning Soul mostra, mais uma vez, o excelente cantor que Bowie é.

A trilogia seguinte é formada por Diamond Dogs, Young Americans e Station to Station. Isto sem contar com PinUps, um álbum de versões de canções que Bowie ouvia em meados dos anos 1960 (The Who, The Kinks, Pink Floyd, Them, The Yardbirds e outros), sem especial interesse. A música daqueles três discos é, para surpresa e decepção de muitos, substancialmente diferente do que Bowie tinha feito até então. Diamond Dogs é um álbum totalmente inspirado em 1984 de Orwell e pensado para encenação teatral. Musicalmente está muito próximo do rhythm 'n' blues dos Rolling Stones e tem um som mais americanizado do que qualquer outro disco anterior. Está longe do melhor Bowie e penso que é o menos interessante desta trilogia. O álbum seguinte, Young Americans, soa ainda mais americano. Desta vez Bowie surpreende tudo e todos com um disco de música funksoul. Mas é uma soul à maneira de Bowie. O próprio aplicou, com uma honestidade desarmante, o termo plastic soul para caracterizar o que se ouve neste disco. Seja como for, há no disco excelentes nacos de soul plástica como Right, Can You Hear Me e a canção que dá título ao álbum. O melhor desta fase americana encontra-se, contudo, em Station to Station, o último desta trilogia. Ainda se encontra lá a influência funksoul, mas incorpora agora um toque do chamado krautrock alemão. Muitos consideram-no um dos melhores discos de Bowie. Não penso o mesmo, mas reconheço que é um disco com momentos musicalmente inspirados. O próprio Bowie parece não encarar esta fase com grande saudade — diz ter sido dos períodos mais negros e autodestrutivos da sua vida — e os temas abordados nas letras são, de facto, de uma enorme desorientação pessoal e intelectual. Ainda assim, Word on a Wing, uma espécie de prece cristã, é uma das canções em que Bowie canta de forma mais espantosamente expressiva, a rivalizar com a versão de Wild is the Wing que encerra o mesmo disco. 


Em 1977 Bowie instalou-se em Berlim à procura um novo rumo para a sua música e também para a sua vida. Foi aí que, fortemente influenciado pelo som do experimentalismo electrónico alemão — sobretudo dos Neu! e dos Kraftwerk —, criou a trilogia formada por Low, Heroes e Lodger, que muitos consideram um verdadeiro renascimento artístico de Bowie. É difícil dizer qual deles o melhor, mas penso que Low se destaca ligeiramente dos outros. Dele fazem parte instrumentais tão enigmaticamente envolventes como Subterraneans e tão encantadoramente desoladores como Warszawa, em que Bowie combina a gravidade electrónica de fundo com elementos vocais de música folclórica polaca. Mesmo a ligeireza da pop electrónica de Sound and Vision revela uma elegância inesperada que não destoa do resto do disco. Em minha opinião, Low está no pódio dos três melhores álbuns de Bowie. 

Heroes é como que uma continuação do disco anterior e é também o nome da canção, escrita em parceria com Brian Eno, que se tornou uma espécie de hino triunfal ao amor audaz. De facto trata-se de uma das melodias mais simples que Bowie alguma vez cantou, mas que tem uma poderosa massa instrumental electrónica — comandada pelos sintetizadores de Eno e reforçada com os efeitos da guitarra de Robert Fripp e de Carlos Alomar — como que a empurrá-la irresistivelmente para uma espécie e auge libertador. Mas este sucesso de forma alguma devia obscurecer instrumentais como Moss Garden, com o seu toque de exotismo oriental. O terceiro álbum da trilogia, Lodger, mantém o nível do anterior. Mais uma vez Bowie combina deliciosamente a electrónica com elementos de world music, como se verifica em Yassassin — nesta canção é notória a influência dos alemães Can, em particular do seu álbum Flow Motion

A seguir ao período de Berlim, Bowie muda novamente de som com Scary Monsters (And Super Creeps). Trata-se de um álbum de canções com um som algo sujo e duro. Há quem considere que Bowie conseguiu, sem perder qualidade, compensar o relativo insucesso comercial dos três álbuns anteriores. Sem dúvida que teve bastante mais sucesso, mas não concordo que tenha mantido a qualidade. Apesar de não ser um mau disco, acaba por estar uns furos abaixo do melhor Bowie. Ainda assim, o álbum inclui Ashes to Ashes, uma das mais geniais canções de Bowie. Quem se der ao trabalho de tentar ouvir separadamente a voz e cada instrumento por si ficará surpreendido como daqueles esboços de sons desconexos Bowie construiu uma canção tão estranhamente original e, ao mesmo tempo, tão eficaz. Eis uma canção que não está ao alcance de qualquer estrela cadente do rock.  

Depois de Scary Monsters, Bowie voltou a surpreender. Para pior, desta vez. Mas isso não apaga o seu impressionante legado anterior. Até porque um dos méritos de Bowie foi o ter ido abastecer-se fora das margens do rock — as suas mais nítidas influências vêm da teatralidade das canções de Jacques Brel, da música de cabaret, dos musicais e da world music —, e combinar isso com o lado mais excêntrico e experimental do rock — Velvet Underground, Kraftwerk — trazendo tudo isso para o palco principal da música popular urbana dos últimos 50 anos.

Uma palavra: respeito!            

Deixo, para terminar, a minha lista pessoal das 33 melhores músicas de Bowie. De fora ficam ainda muitas canções excelentes. Talvez a lista fosse ligeiramente diferente se elaborada amanhã em vez de hoje. Ligeiramente!

33 Bowie (a lista no Spotify)

1. Space Oddity   (Space Oddity, 1969)
2. An Occasional Dream   (Space Oddity, 1969)
3. All the Madmen   (The Man Who Sold the World, 1970)
4. The Man Who Sold the World   (The Man Who Sold the World, 1970)
5. Changes   (Hunky Dory, 1971)
6. Life on Mars   (Hunky Dory, 1971)
7. Quicksand   (Hunky Dory, 1971)
8. The Bewlay Brothers   (Hunky Dory, 1971)
9. Soul Love   (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and..., 1972)
10. Moonage Daydream   (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and..., 1972)
11. Starman   (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and..., 1972)
12. Lady Stardust   (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and..., 1972)
13. Ziggy Stardust   (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and..., 1972)
14. Rock 'n' Roll Suicide   (The Rise and Fall of Ziggy Stardust and..., 1972)
15. Drive-In Saturday   (Aladdin Sane, 1973)
16. Time   (Aladdin Sane, 1973)
17. Lady Grinning Soul   (Aladdin Sane, 1973)
18. Diamond Dogs   (Diamond Dogs, 1974)
19. Right   (Young Americans, 1975)
20. Can You Hear Me   (Young Americans, 1975)
21. Word on a Wing   (Station to Station, 1976)
22. Sound and Vision   (Low, 1977)
23. Warszawa   (Low, 1977)
24. Subterraneans   (Low, 1977)
25. Heroes   (Heroes, 1977)
26. Moss Garden   (Heroes, 1977)
27. Fantastic Voyage   (Lodger, 1979)
28. Yassassin   (Lodger, 1979)
29. Ashes to Ashes   (Scary Monsters, 1980)
30. Buddha of Suburbia   (Buddha of Suburbia, 1993)
31. Something in the Air   ('hours...', 1999)
32. Slip Away   (Heathen, 2002)
33. Lazarus   (Blackstar, 2016)