quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Um dia mundial da filosofia musical

O grupo de Filosofia da ESMTG celebra, mais uma vez, o Dia Mundial da Filosofia. E os membros do grupo continuam a pensar que a maneira mais adequada de celebrar tal dia é cada um de nós tentar filosofar um pouco, fora dos limites dos programas escolares. Felizmente, matéria de reflexão filosófica fora dos programas é coisa que não falta. Neste ano, os professores do grupo decidiram tentar reflectir filosoficamente sobre... música. Isso mesmo, escrever um texto (é muito importante que os professores escrevam e partilhem o que escrevem) sobre alguma música ou canção à escolha de cada um.

Aqui fica o texto que escrevi. Optei por música clássica como poderia ter escolhido uma canção pop, de heavy metal ou de jazz. Não porque considere esse estilo ou tradição musical superior a outros. São apenas diferentes. E ainda bem para quem aprecia realmente música. 

SEPTEMBER

RICHARD STRAUSS

Que relação há entre filosofia e música? Parece óbvio que a música não tem conteúdo filosófico: ela não responde a problemas filosóficos, não apresenta teses nem argumentos e muito menos esclarece os conceitos que usamos para pensarmos sobre o mundo. Isso é mau? Não, desde que seja boa música.

Todavia, determinar o que faz a música ser boa já é uma questão filosófica. Podemos não aprender filosofia ao ouvir música, mas a música pode dar muito que pensar aos filósofos. Mesmo que não haja música filosófica, a filosofia da música está de saúde e recomenda-se. Dos muitos problemas filosóficos que se colocam acerca da música, um dos mais intrigantes é o da relação entre a música e as emoções, que é conhecido como «o problema da expressão musical».

A relação entre música e emoção é demasiado óbvia, levando muitas pessoas a concluir que a música é a expressão de emoções. Coisa estranha, pois as emoções envolvem estados psicológicos e a música é composta por nada mais que sons. Só seres sencientes, com uma mente, podem sentir emoções. Portanto, só seres sencientes podem exprimir emoções, dado que exprimir algo é exteriorizar o que se encontra lá dentro. Dizer que os sons de uma música exprimem emoções é como dizer que os espinafres sentem inveja dos pepinos. A música — como os espinafres — não sente seja o que for; quem sente são as pessoas que a apreciam. Por isso, alguns filósofos defendem que a música não exprime emoções, mas antes causa (ou suscita, ou provoca) em nós emoções: de tristeza, alegria, euforia, tranquilidade, arrebatamento, paixão, etc. Assim, a música não pode literalmente ser triste, nem alegre, nem eufórica, etc.; as pessoas é que podem ficar tristes, alegres, eufóricas, etc., quando a ouvem.

Mas como acontece tal coisa? Isso levanta, por sua vez, novas questões não menos difíceis, que não cabe aqui expor. Fico-me com a minha teoria preferida, sem a explicar: a música não exprime emoções, nem causa em nós emoções; ela pode muitas vezes representar emoções. Como o faz? Resumidamente: a sequência de sons de uma música está concebida de modo a criar certas expectativas nos ouvintes, as quais podem ser satisfeitas, frustradas ou adiadas parcial ou totalmente, criando neles certos estados psicofisiológicos de tensão, relaxamento, suspense, ansiedade, surpresa, resolução, choque, etc., idênticos aos que sentimos quando estamos tristes, alegres, surpreendidos, eufóricos, etc.

Nem toda a música o consegue fazer com sucesso, mas há algumas que fazem de nós, ouvintes atentos, o que «querem». É, pessoalmente, o caso de September, uma das emocionantes Quatro Últimas Canções (Vier Letzte Lieder), escrita em 1948 pelo compositor alemão Richard Strauss. As quatro canções são provavelmente das canções mais belas jamais escritas e são um comovente testamento musical do genial compositor alemão, que viria a morrer um ano depois de as ter composto.

Escolhi September como poderia ter escolhido qualquer das outras três, em especial Beim Schlafengehen (Indo dormir) ou Im Abendrot (No Crepúsculo). September é uma canção para soprano e orquestra, baseada num poema de Hermann Hesse.

Para usufruir de toda a riqueza emocional de September é preciso entregarmo-nos totalmente à sua escuta, pois é incompatível com outras ocupações. Ouvir esta música enquanto se faz outras coisas é maltratá-la. E algo maltratado é sempre algo desagradável. Assim, recomendo ao leitor destas palavras que não tente ouvi-la se estiver com pressa; nem sequer quando está à espera que o tempo passe. Não, ela tem de ser ouvida com a mente completamente limpa e disponível. Ela precisa da nossa mente aberta para entrar e a preencher totalmente. Entrar no seu universo é entrar num universo exclusivo, e isso impõe certas condições. 
  
Uma vez disponíveis para ela, o que tem para nos dar? Não se espere um festival patético de emoções nem dores de alma bacocas. É tudo muito sereno, subtil e contido, mas intenso e sugestivo na sua contenção.

A canção abre com as cordas e sopros da orquestra de forma aparentemente hesitante, tornando-se súbita, mas também docemente, mais afirmativa. Começa, então, o soprano: 

O jardim está de luto.  
A chuva cai fria sobre as flores.  
O Verão estremece em silêncio, 
aguardando o seu fim. 

A melodia é encantadoramente sinuosa e imprevisível, enquanto as cordas da orquestra se desdobram nos seus diferentes naipes e timbres, em harmonias subtilmente caprichosas: violinos, violas e violoncelos parecem divergir harmoniosamente para, inesperadamente, se voltarem a encontrar.

De uma forma mais assertiva, mas ainda tranquila, surgem os versos da segunda estrofe, com sopros de flautas como que escondidos por detrás da paisagem orquestral: 

Douradas, folha após folha caem  
do alto pé de acácia.  
O Verão sorri, surpreso e lânguido,  
no sonho moribundo do jardim.

A melodia do soprano muda de rumo no início do terceiro verso (Sommer lächelt / O Verão sorri), criando um momento de pura e inesperada felicidade auditiva. A concluir a segunda estrofe, somos mais uma vez surpreendidos com o envolvente percurso melódico de uma orquestra luminosa e colorida. 

Surge a terceira estrofe. A voz flutuante do soprano canta:

Muito tempo ainda junto às rosas  
ele se detém, aspirando ao repouso.  
Lentamente ele fecha  
seus olhos cansados. 

A palavra Langsam (Lentamente), com que se inicia o terceiro verso, é cantada muito lenta e gravemente, transportando-nos devagar até nos fazer sentir como que a levitar. O sentimento de paz e tranquilidade é simplesmente indescritível. Mas, enquanto a última sílaba se vai lentamente desvanecendo na voz do soprano, eis que surge sorrateiramente, a rematar, o som quente, calmo e reconciliador de uma trompa, como que a afagar-nos com os últimos raios de sol do Verão que se despede. Quase paramos de respirar. Isto dá cabo de uma pessoa! É altura de limpar discretamente o canto do olho.

Talvez não me tenha emocionado, mas pareceu mesmo que sim.


Não faltam gravações desta obra-prima da música do século XX (e não só), interpretada pelos mais variados sopranos e com orquestras dirigidas por outros tantos maestros. Já ouvi muitas, mas nenhuma me satisfaz tanto como a gravação da Philips, com o soprano Jessye Norman e com a Gewandhausorchester Leipzig, dirigida por Kurt Masur.



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