quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Padres, revolucionários e lunáticos

Tropecei mesmo agora com o texto que escrevi para o Dia Mundial da Filosofia de 2008. Ainda me lembro bem da conversa que deu origem ao texto. E, de vez em quando, ainda me cruzo na rua com o colega de Matemática, há muito reformado, que teve essa conversa comigo.

Aqui fica o texto.


Nunca mais me esqueço do que, há muitos anos, um colega mais velho de Matemática, entretanto reformado, me disse na sala de professores. Além do seu cachimbo — nessa altura ainda se fumava nas escolas —, esse colega era conhecido por assumir frequentemente uma atitude intelectualmente provocadora e até politicamente incorrecta, como agora se diz. Estava, então, eu a lamentar-me baixinho pelo facto de tantas pessoas pensarem que os filósofos são aqueles que procuram saber tudo sobre coisa nenhuma quando o colega, que ainda mal conhecia, se virou para mim e disse: «olha lá, pá, ainda não cheguei a perceber se tu és dos padres, dos pseudo-revolucionários ou dos poetas lunáticos.»

Fiquei intrigado com o comentário dele e perguntei o que queria dizer com aquilo. «Ora, voltou ele à carga, todos os professores de Filosofia que conheci ou pareciam padres ou pseudo-revolucionários de esquerda ou tolinhos armados em poetas lunáticos.» Achei a generalização algo abusiva, mas quis saber como caracterizava ele cada um desses grupos. A resposta foi, mais ou menos, nestes termos: «os padres ensinam filosofia como se fosse catequese e têm aquele ar muito cinzentinho; os pseudo-revolucionários de esquerda não estão interessados em ensinar seja o que for, mas a levar a rapaziada a mandar bocas contra o sistema; os pseudo-poetas são aqueles que, sem paciência para raciocinar disciplinadamente, querem é liberdade para dizer a primeira parvoíce que lhes passe pela tola.»

Penso que o comentário do colega foi injusto, pois felizmente não se aplica a muitos professores de Filosofia. Mas, ainda assim, não deixou de me fazer pensar. A verdade é que ele estava a tentar denunciar aquilo em que a filosofia não se pode tornar e que, a ser assim, a tornaria dispensável. O colega queria, no fundo, protestar contra a ideia de que a filosofia é um conjunto de preceitos que se transmitem dogmaticamente (os padres); ou um gesto de pura contestação, seja contra o que for (os revolucionários); ou ainda um pretexto para cada um exprimir o que lhe vai na alma, seja lá isso o que for (os poetas). Sem desprimor para os verdadeiros padres, revolucionários e poetas.

Ora bem, esta ideia não é totalmente uma invenção dele. A verdade é que a tentação para muitos de nós santificarmos ou idolatrarmos os nossos filósofos preferidos pode fazer-nos deslizar facilmente do campo do exercício crítico que caracteriza a filosofia para o campo da catequese quase religiosa. Assim como é fácil ser impaciente e criticar sem antes ter compreendido, ou confundir a ausência de dogmas com a livre expressão de sentimentos e o reino do vale tudo. A filosofia não é religião, não é política e não é poesia. A filosofia ocupa-se dos seus próprios problemas, apesar de alguns deles serem acerca da religião, da política e da poesia. E ainda bem para a filosofia, para a política e para a poesia que é assim.

É certo que estes domínios por vezes se contaminam, tal como se pode misturar água com café. Mas, tal como a água não passa a ser café e o café não passa a ser água, também a filosofia não passa a ser poesia nem a poesia filosofia. E também não é de estranhar que a melhor filosofia se manifeste na discussão directa com os filósofos, pois afinal são eles os profissionais do ofício, os que mais treinados estão para formular correctamente e discutir criticamente os problemas filosóficos.

A filosofia não precisa de se tornar literatura, poesia ou outra coisa qualquer para ter dignidade. Só quem não vê valor intrínseco na filosofia precisa de o ir buscar a outro lado. E a literatura e a poesia também não precisam da filosofia para nos deleitarem. Seria tudo muito mais pobre e desinteressante se não fosse assim.                     

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