segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Saber discordar


Qual é a negação de «O João e a Joana amam-se»?

Parece fácil? Pois, mas não é. Que o digam os alunos do 10º N, que levaram algum tempo perdidos com tentativas falhadas, até chegarem à resposta certa. O que, de resto, mostra que gostam de pensar e de aprender.

Antes de dar a resposta, vale a pena dizer algo mais.

Como seria de esperar, os filósofos passam o tempo a discutir. Discutem porque discordam: aquilo que uns pensam ser verdadeiro outros acreditam ser falso. Isso é o que leva uns a negar o que outros afirmam. Por exemplo, se um filósofo A defender a tese de que temos livre-arbítrio e outro filósofo B negar tal tese, este filósofo B estará, por sua vez, a defender outra tese: a tese de que não temos livre-arbítrio. Neste caso é fácil ver que a negação da afirmação «Temos livre-arbítrio» é «Não temos livre-arbítrio». 

Mas era bom que todas as negações fossem assim tão fáceis de compreender. Algumas teses filosóficas (e não só, claro) são mais complexas, pelo que temos de ter cuidado para não nos enganarmos a negá-las, caso nos pareça que não concordamos com elas.

As teses são aquilo a que se costuma chamar «proposições», as quais são expressas por meio de frases declarativas. A primera coisa que precisamos de compreender para negar correctamente uma dada tese ou proposição é a própria noção de negação. Ora, a negação é uma relação entre proposições, sendo que duas proposições são a negação uma da outra quando não podem ser ambas verdadeiras nem podem ser ambas falsas: a verdade de uma delas implica a falsidade da outra e vice-versa. 

Por exemplo, a negação de «Alguns algarvios são inteligentes» não é, como precipitadamente certos alunos dizem, «Alguns algarvios não são inteligentes», até porque as proposições expressas por estas frases são ambas verdadeiras. Do mesmo modo, a negação da tese de que todo o conhecimento tem origem na experiência não é, como por vezes se lê até em manuais de filosofia, que nenhum conhecimento tem origem na experiência. Isto porque se, por hipótese, for verdade que algum tem origem na experiência e outro não, então ambas as proposições anteriores serão falsas. Ora isso nunca pode ocorrer entre duas proposições que se negam mutuamente.

Mas podemos dar outros exemplos complexos. Há filósofos que defendem, por exemplo, que se o determinismo é verdadeiro, então não temos livre-arbítrio (já agora, esta é conhecida como «a tese incompatibilista»). E, claro, há filósofos que discordam (os compatibilistas). O que defendem então os compatibilistas? Bom, estes defendem a negação da tese incompatibilista: que o determinismo é verdadeiro e que temos livre-arbítrio.

Regressemos agora à pergunta inicial. Parece que a negação de «O João e a Joana amam-se» é «O João e a Joana não se amam». Pois parece, mas não é!

E não é, porque ambas as proposições expressas pelas frases anteriores podem ser falsas, apesar de não poderem ser ambas verdadeiras. Para compreender melhor isto, imagine-se que o João ama, de facto, a Joana, mas que a Joana se está nas tintas para o João. Neste caso, a proposição de que o João e a Joana se amam seria falsa. Mas assim também a proposição de que o João e a Joana não se amam seria falsa, dado ser falso que o João não ama a Joana. 

Concluindo, só há uma maneira de negar a proposição de que o João e a Joana se amam, que é a seguinte: o João não ama a Joana ou a Joana não ama o João.

Às vezes as pessoas pensam que estão a negar o que outros dizem e não estão a negar coisa alguma. É por isso que precisamos de aprender a discordar.


4 comentários:

  1. Aires, um dos problemas da linguagem natural é que nem sempre é certo que saibamos o que está a ser declarado com uma dada frase. Em português, a frase "O João e a Joana amam-se" pode querer dizer "... amam-se mutuamente". Acho mesmo que na maior parte dos casos aquela declarativa é interpretada desse modo. E nesse caso, o teu raciocínio estaria errado. Ou estou eu errado?

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  2. Não está errado, Porfírio, precisamente porque privilegiei essa interpretação. Na verdade, podemos interpretar a conjunção de duas maneiras:

    1. O João ama-se a sí próprio e a Joana ama-se a si própria.
    2. O João ama a Joana e a Joana ama o João.

    A interpretação 1 é menos comum e algo mais rebuscada. Em contextos mais comuns, a interpretação correcta é a 2, a tal que diz que eles se amam mutuamente.

    Ora a negação correcta de 2 é uma disjunção em que cada um dos disjuntos (conjuntos na proposição de partida) é negado. Quer dizer, a negação de uma proposição com a forma 'A e B' é 'Não A ou não B', como também nos mostram as leis de de Morgan.

    É certo que as proposições de que O João e a Joana se amam e de que O João e a Joana não se amam não podem ser ambas verdadeiras (da verdade de uma segue-se a falsidade da outra), mas podem ser ambas falsas. Assim, já não são a negação uma da outra.

    Mas tens razão num aspecto importante, que é o de a linguagem natural não ter a transparência que por vezes a queremos forçar a ter.

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  3. Aires, obrigado pela tua paciência. Acho que ainda me lembro dessas coisas mais básicas (apesar do M. Lourenço uma vez me ter dito "é pena você não gostar mais de lógica"...).

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  4. Acho que entendi é concordo com a interpretação do sr. Porfírio. A negação de a) "João e Joana amam-se (mutuamente)" pode ser b)"João e Joana não se amam (mutuamente)". Onde b é verdadeira caso João não ame Joana, Joana não ame João ou ambos não se amem.

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