sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Provas

«Aquilo que pode ser afirmado sem provas pode ser rejeitado sem provas», disse Christopher Hitchens. Concordam?



terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A teoria do conhecimento

A propósito da V Conferência de Filosofia da Teixeira Gomes realizada em Março de 2004, fiz, por iniciativa do grupo de Filosofia da escola, uma curta entrevista à conferencista desse ano, a professora Adriana Silva Graça (Universidade de Lisboa). Uma vez que o sítio onde foi publicada está desactivado, disponibilizo-a agora aqui, pois seria uma pena não estar acessível.


Na conferência que proferiu disse que o problema do conhecimento é um problema epistemológico. Qual é, então, a diferença entre epistemologia, gnosiologia e teoria do conhecimento?
As três designações são usadas com significados ligeiramente diferentes em tradições filosóficas distintas. Na tradição filosófica à qual eu pertenço, o primeiro e o terceiro desses termos são basicamente sinónimos; o segundo, não é praticamente usado.

Qual é a importância que o estudo da epistemologia tem numa boa formação filosófica?
Os temas filosóficos pertencentes à Epistemologia ou Teoria da Conhecimento sempre foram fulcrais ao longo da História da Filosofia, ao lado dos temas pertencentes à Metafísica. É crucial que tenhamos uma ideia o mais precisa possível de como e se é possível conhecer a realidade.

Quais são os principais problemas da epistemologia que merecem mais atenção por parte dos filósofos actuais, além do problema da definição de conhecimento? E quais são as teorias mais destacadas?
Por exemplo, i) se, de todo em todo, o conhecimento é possível; ii) como o conhecimento se deixa analisar; iii) se existe conhecimento a priori, ou se todo o conhecimento começa com a experiência; iii) como se deixa organizar um certo conjunto de crenças, do ponto de vista da sua justificação; iv) quais são as fontes de conhecimento; v) aquilo a que se tem acesso cognitivo no acto perceptivo.
Para a primeira questão, é necessário desenvolver boas maneira de refutar o argumento céptico; Descartes e Putnam têm boas formas, muito diferentes entre si, de o fazer. Relativamente ao terceiro tema destacam-se as respostas racionalista e empirista (na sua forma moderada ou radical). Quanto ao quarto problema, temos as teorias fundacionalistas e coerentistas em debate. Finalmente, quanto ao quinto, temos as teorias directas e indirectas da percepção, bem como o idealismo e o fenomenalismo.

Como é que encara a actividade filosófica na actualidade? Vê o filósofo como uma pessoa que opina sobre quase todos os assuntos para as pessoas em geral ou, pelo contrário, vê-o antes como um especialista que fala de coisas para a compreensão das quais se exige o domínio de técnicas próprias?
Vejo o filósofo mais como um especialista, cuja especialidade é o lado mais abstracto das diferentes questões. Vejo a filosofia como estando em continuidade com as diferentes ciências e diferentes conjuntos organizados de crenças, mas preocupando-se em fundamentar (e discutir) o que todos os outros tomam por óbvio. É claro que a análise filosófica exige o domínio de técnicas próprias.

Tem uma disciplina filosófica pela qual se interesse mais? Qual é e porquê?
Sim. É a Filosofia da Linguagem. Porque é uma disciplina filosófica que faz fronteira com a Epistemologia, a Metafísica e a Filosofia da Mente, fazendo girar em torno dela uma diversidade grande de problemas filosóficos muito interessantes. Interessam-me particularmente os problemas do sentido e da referência de expressões linguísticas (frases ou certos tipos de termos como termos gerais, termos singulares, termos indexicais, termos descritivos etc.), bem como os problemas relacionados com a relevância do contexto para a determinação daquilo que é dito por meio de certas elocuções de frases. A Filosofia da Linguagem é em grande parte responsável pelo desenvolvimento de boa parte dos conceitos que hoje são usados na prática filosófica corrente (como os conceitos de a priori, de necessário e de analítico). É efectivamente a minha área preferida de estudo.

Tem algum ou alguns filósofos preferidos? Porquê?
Tenho alguns: Aristóteles, Leibniz e Russell. Os três inteiramente originais, com grande poder argumentativo, criadores de sistemas filosóficos geniais para a sua época. Preocuparam-se - os três - em construir um edifício cujos alicerces tornaram explícitos.

O que é fazer investigação em filosofia?
É ter muito trabalho pela frente! Ler muito, tentar descobrir uma nova ideia, ou porque é que uma certa teoria não serve, ou porque é que teorias tidas por inconsistentes afinal não o são. Mas é muito difícil fazê-lo, pois, por um lado, não temos dados empíricos (temos unicamente algumas intuições, que podem sempre ser disputadas), e por outro, há muita gente a trabalhar na comunidade internacional e é difícil, com as condições que temos, competir com eles.

O que a levou à filosofia?
O gosto pelos problemas na sua formulação mais abstracta e uma professora do ensino secundário, por quem tenho ainda hoje grande estima: Adelaide Galvão Teles.

Gosta de ensinar filosofia? Porquê?
Muito. Gosto de sentir que os alunos se interessam por questões importantes, gosto de observar o seu desenvolvimento e há sempre aqueles alunos que compensam o trabalho de preparar uma aula. Sempre que é possível, confronto as minhas próprias ideias com os alunos na aula (nas últimas aulas da disciplina, após eles já terem algum controle dos problemas em discussão).

Será que é possível haver uma colaboração mais estreita, no que diz respeito ao ensino da filosofia, entre os professores do ensino superior e do ensino secundário?
Julgo que sim. Ela ocorrerá sempre que houver vontade para isso. Julgo que todos temos a ganhar.

sábado, 30 de novembro de 2013

David Hume: o cepticismo no seu melhor

Ao fazer uma limpeza num velho disco externo, encontrei mais uns quantos textos escritos para a comemoração do Dia Mundial da Filosofia. Deixo aqui o de 2006, sem qualquer alteração. Recordo-me que a ideia naquele ano foi cada professor do grupo escrever um texto de um página sobre um dos nossos filósofos preferidos, apresentando-o e justificando a escolha. Nesse ano escrevi dois textos. Este é sobre David Hume, cujas ideias sobre o conhecimento iremos estudar e discutir já no próximo período.

DAVID HUME
O CEPTICISMO NO SEU MELHOR


Ler David Hume é uma experiência intelectual desconcertante. Começa – num espírito bem socrático – por destruir muitas das nossas ideias e convicções mais básicas, para terminar – talvez pouco socraticamente – por devolver o que nos tinha tirado. Só que, uma vez recuperadas as nossas crenças iniciais, elas perderam, nas mãos de Hume, o seu valor facial primitivo: elas continuam a ser-nos caras, até porque não dispomos de alternativas melhores, mas a certeza nelas depositada ficou irremediavelmente arruinada. 
Um dos maiores representatntes do iluminismo escocês – nasceu em Edimburgo, em 1711, e aí veio a morrer em 1776 –, Hume defendia que «devemos acreditar apenas naquilo em que temos boas razões para acreditar». Mas em que teríamos nós boas razões para acreditar? Temos boas razões para acreditar que o Sol aquece? Que havemos de morrer um dia? Que Deus existe? Que há coisas realmente belas? Que a razão nos diz o que é certo e o que é errado? Que existe o mundo exterior? 
A resposta de Hume para todas estas perguntas é, insisto, desconcertante: nada nos permite ter a certeza em qualquer destas crenças. Acontece apenas que algumas delas são simplesmente inevitáveis, pois fazem parte do nosso instinto natural de sobrevivência e não conseguimos viver sem elas. Tudo o que podemos dizer é que há impressões dos sentidos e que, supostamente, estas seriam explicadas pela existência de objectos exteriores. Mas nada nos garante tal coisa. Também não podemos dizer que o Sol aquece, pois tudo o que realmente sabemos é que temos a impressão de ver o Sol e a sensação de calor. A conexão entre uma coisa e outra é algo que não observamos, pelo que tudo se resume ao hábito de associarmos essas impressões. Mas do facto de haver uma conjunção constante entre duas coisas não se segue que uma não possa existir sem a outra. Analogamente, também não se compreende, a não ser pelo hábito, por que razão dizemos que iremos morrer um dia, coisa que ninguém ainda observou. Claro que até agora todas as pessoas abaixo de uma certa idade morreram. Mas, a não ser que saibamos que a natureza é regular e uniforme, não podemos saber que nós também iremos morrer. Só que não podemos saber que a natureza é regular e uniforme a não ser porque vimos muitas vezes coisas como, por exemplo, todas as pessoas abaixo de uma certa idade morrerem. Ora, isto é andar aos círculos, pelo que a explicação não serve – este é o célebre problema da indução, pela primeira vez levantado por Hume. 
Além disso, também não há qualquer razão para acreditarmos que Deus existe; como não há qualquer razão para acreditarmos em milagres; como não temos boas razões para afirmar que a beleza está nas próprias coisas; como não se consegue explicar em que sentido poderá a moral fundar-se na razão em vez do sentimento. 
Perante tudo isto, poderíamos pensar que Hume é um céptico pessimista. Mas isso não é correcto. É ceptico, mas não é pessimista. O seu cepticismo é resgatado por uma espécie de senso-comum sofisticado: certas ideias são tão vivas que não podemos viver como se fossem simplesmente falsas. O que não garante que sejam verdadeiras. Por isso, não nos podemos deixar dormir no nosso sono dogmático – o próprio Kant confessou que foi despertado do seu sono dogmático pela leitura de Hume. 
A filosofia seria hoje irreconhecível sem Hume. Ele obrigou muitos filósofos, políticos, artistas, cientistas e até crentes religiosos a pensar melhor, a rever e a justificar cuidadosamente as suas ideias. A sua influência é enorme em praticamente todas as disciplinas filosóficas. Mas ainda assim, Hume não se esqueceu do que mais importa: «sê um filósofo, mas no meio de toda a tua filosofia, não deixes de ser um homem».

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Padres, revolucionários e lunáticos

Tropecei mesmo agora com o texto que escrevi para o Dia Mundial da Filosofia de 2008. Ainda me lembro bem da conversa que deu origem ao texto. E, de vez em quando, ainda me cruzo na rua com o colega de Matemática, há muito reformado, que teve essa conversa comigo.

Aqui fica o texto.


Nunca mais me esqueço do que, há muitos anos, um colega mais velho de Matemática, entretanto reformado, me disse na sala de professores. Além do seu cachimbo — nessa altura ainda se fumava nas escolas —, esse colega era conhecido por assumir frequentemente uma atitude intelectualmente provocadora e até politicamente incorrecta, como agora se diz. Estava, então, eu a lamentar-me baixinho pelo facto de tantas pessoas pensarem que os filósofos são aqueles que procuram saber tudo sobre coisa nenhuma quando o colega, que ainda mal conhecia, se virou para mim e disse: «olha lá, pá, ainda não cheguei a perceber se tu és dos padres, dos pseudo-revolucionários ou dos poetas lunáticos.»

Fiquei intrigado com o comentário dele e perguntei o que queria dizer com aquilo. «Ora, voltou ele à carga, todos os professores de Filosofia que conheci ou pareciam padres ou pseudo-revolucionários de esquerda ou tolinhos armados em poetas lunáticos.» Achei a generalização algo abusiva, mas quis saber como caracterizava ele cada um desses grupos. A resposta foi, mais ou menos, nestes termos: «os padres ensinam filosofia como se fosse catequese e têm aquele ar muito cinzentinho; os pseudo-revolucionários de esquerda não estão interessados em ensinar seja o que for, mas a levar a rapaziada a mandar bocas contra o sistema; os pseudo-poetas são aqueles que, sem paciência para raciocinar disciplinadamente, querem é liberdade para dizer a primeira parvoíce que lhes passe pela tola.»

Penso que o comentário do colega foi injusto, pois felizmente não se aplica a muitos professores de Filosofia. Mas, ainda assim, não deixou de me fazer pensar. A verdade é que ele estava a tentar denunciar aquilo em que a filosofia não se pode tornar e que, a ser assim, a tornaria dispensável. O colega queria, no fundo, protestar contra a ideia de que a filosofia é um conjunto de preceitos que se transmitem dogmaticamente (os padres); ou um gesto de pura contestação, seja contra o que for (os revolucionários); ou ainda um pretexto para cada um exprimir o que lhe vai na alma, seja lá isso o que for (os poetas). Sem desprimor para os verdadeiros padres, revolucionários e poetas.

Ora bem, esta ideia não é totalmente uma invenção dele. A verdade é que a tentação para muitos de nós santificarmos ou idolatrarmos os nossos filósofos preferidos pode fazer-nos deslizar facilmente do campo do exercício crítico que caracteriza a filosofia para o campo da catequese quase religiosa. Assim como é fácil ser impaciente e criticar sem antes ter compreendido, ou confundir a ausência de dogmas com a livre expressão de sentimentos e o reino do vale tudo. A filosofia não é religião, não é política e não é poesia. A filosofia ocupa-se dos seus próprios problemas, apesar de alguns deles serem acerca da religião, da política e da poesia. E ainda bem para a filosofia, para a política e para a poesia que é assim.

É certo que estes domínios por vezes se contaminam, tal como se pode misturar água com café. Mas, tal como a água não passa a ser café e o café não passa a ser água, também a filosofia não passa a ser poesia nem a poesia filosofia. E também não é de estranhar que a melhor filosofia se manifeste na discussão directa com os filósofos, pois afinal são eles os profissionais do ofício, os que mais treinados estão para formular correctamente e discutir criticamente os problemas filosóficos.

A filosofia não precisa de se tornar literatura, poesia ou outra coisa qualquer para ter dignidade. Só quem não vê valor intrínseco na filosofia precisa de o ir buscar a outro lado. E a literatura e a poesia também não precisam da filosofia para nos deleitarem. Seria tudo muito mais pobre e desinteressante se não fosse assim.                     

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Um dia mundial da filosofia musical

O grupo de Filosofia da ESMTG celebra, mais uma vez, o Dia Mundial da Filosofia. E os membros do grupo continuam a pensar que a maneira mais adequada de celebrar tal dia é cada um de nós tentar filosofar um pouco, fora dos limites dos programas escolares. Felizmente, matéria de reflexão filosófica fora dos programas é coisa que não falta. Neste ano, os professores do grupo decidiram tentar reflectir filosoficamente sobre... música. Isso mesmo, escrever um texto (é muito importante que os professores escrevam e partilhem o que escrevem) sobre alguma música ou canção à escolha de cada um.

Aqui fica o texto que escrevi. Optei por música clássica como poderia ter escolhido uma canção pop, de heavy metal ou de jazz. Não porque considere esse estilo ou tradição musical superior a outros. São apenas diferentes. E ainda bem para quem aprecia realmente música. 

SEPTEMBER

RICHARD STRAUSS

Que relação há entre filosofia e música? Parece óbvio que a música não tem conteúdo filosófico: ela não responde a problemas filosóficos, não apresenta teses nem argumentos e muito menos esclarece os conceitos que usamos para pensarmos sobre o mundo. Isso é mau? Não, desde que seja boa música.

Todavia, determinar o que faz a música ser boa já é uma questão filosófica. Podemos não aprender filosofia ao ouvir música, mas a música pode dar muito que pensar aos filósofos. Mesmo que não haja música filosófica, a filosofia da música está de saúde e recomenda-se. Dos muitos problemas filosóficos que se colocam acerca da música, um dos mais intrigantes é o da relação entre a música e as emoções, que é conhecido como «o problema da expressão musical».

A relação entre música e emoção é demasiado óbvia, levando muitas pessoas a concluir que a música é a expressão de emoções. Coisa estranha, pois as emoções envolvem estados psicológicos e a música é composta por nada mais que sons. Só seres sencientes, com uma mente, podem sentir emoções. Portanto, só seres sencientes podem exprimir emoções, dado que exprimir algo é exteriorizar o que se encontra lá dentro. Dizer que os sons de uma música exprimem emoções é como dizer que os espinafres sentem inveja dos pepinos. A música — como os espinafres — não sente seja o que for; quem sente são as pessoas que a apreciam. Por isso, alguns filósofos defendem que a música não exprime emoções, mas antes causa (ou suscita, ou provoca) em nós emoções: de tristeza, alegria, euforia, tranquilidade, arrebatamento, paixão, etc. Assim, a música não pode literalmente ser triste, nem alegre, nem eufórica, etc.; as pessoas é que podem ficar tristes, alegres, eufóricas, etc., quando a ouvem.

Mas como acontece tal coisa? Isso levanta, por sua vez, novas questões não menos difíceis, que não cabe aqui expor. Fico-me com a minha teoria preferida, sem a explicar: a música não exprime emoções, nem causa em nós emoções; ela pode muitas vezes representar emoções. Como o faz? Resumidamente: a sequência de sons de uma música está concebida de modo a criar certas expectativas nos ouvintes, as quais podem ser satisfeitas, frustradas ou adiadas parcial ou totalmente, criando neles certos estados psicofisiológicos de tensão, relaxamento, suspense, ansiedade, surpresa, resolução, choque, etc., idênticos aos que sentimos quando estamos tristes, alegres, surpreendidos, eufóricos, etc.

Nem toda a música o consegue fazer com sucesso, mas há algumas que fazem de nós, ouvintes atentos, o que «querem». É, pessoalmente, o caso de September, uma das emocionantes Quatro Últimas Canções (Vier Letzte Lieder), escrita em 1948 pelo compositor alemão Richard Strauss. As quatro canções são provavelmente das canções mais belas jamais escritas e são um comovente testamento musical do genial compositor alemão, que viria a morrer um ano depois de as ter composto.

Escolhi September como poderia ter escolhido qualquer das outras três, em especial Beim Schlafengehen (Indo dormir) ou Im Abendrot (No Crepúsculo). September é uma canção para soprano e orquestra, baseada num poema de Hermann Hesse.

Para usufruir de toda a riqueza emocional de September é preciso entregarmo-nos totalmente à sua escuta, pois é incompatível com outras ocupações. Ouvir esta música enquanto se faz outras coisas é maltratá-la. E algo maltratado é sempre algo desagradável. Assim, recomendo ao leitor destas palavras que não tente ouvi-la se estiver com pressa; nem sequer quando está à espera que o tempo passe. Não, ela tem de ser ouvida com a mente completamente limpa e disponível. Ela precisa da nossa mente aberta para entrar e a preencher totalmente. Entrar no seu universo é entrar num universo exclusivo, e isso impõe certas condições. 
  
Uma vez disponíveis para ela, o que tem para nos dar? Não se espere um festival patético de emoções nem dores de alma bacocas. É tudo muito sereno, subtil e contido, mas intenso e sugestivo na sua contenção.

A canção abre com as cordas e sopros da orquestra de forma aparentemente hesitante, tornando-se súbita, mas também docemente, mais afirmativa. Começa, então, o soprano: 

O jardim está de luto.  
A chuva cai fria sobre as flores.  
O Verão estremece em silêncio, 
aguardando o seu fim. 

A melodia é encantadoramente sinuosa e imprevisível, enquanto as cordas da orquestra se desdobram nos seus diferentes naipes e timbres, em harmonias subtilmente caprichosas: violinos, violas e violoncelos parecem divergir harmoniosamente para, inesperadamente, se voltarem a encontrar.

De uma forma mais assertiva, mas ainda tranquila, surgem os versos da segunda estrofe, com sopros de flautas como que escondidos por detrás da paisagem orquestral: 

Douradas, folha após folha caem  
do alto pé de acácia.  
O Verão sorri, surpreso e lânguido,  
no sonho moribundo do jardim.

A melodia do soprano muda de rumo no início do terceiro verso (Sommer lächelt / O Verão sorri), criando um momento de pura e inesperada felicidade auditiva. A concluir a segunda estrofe, somos mais uma vez surpreendidos com o envolvente percurso melódico de uma orquestra luminosa e colorida. 

Surge a terceira estrofe. A voz flutuante do soprano canta:

Muito tempo ainda junto às rosas  
ele se detém, aspirando ao repouso.  
Lentamente ele fecha  
seus olhos cansados. 

A palavra Langsam (Lentamente), com que se inicia o terceiro verso, é cantada muito lenta e gravemente, transportando-nos devagar até nos fazer sentir como que a levitar. O sentimento de paz e tranquilidade é simplesmente indescritível. Mas, enquanto a última sílaba se vai lentamente desvanecendo na voz do soprano, eis que surge sorrateiramente, a rematar, o som quente, calmo e reconciliador de uma trompa, como que a afagar-nos com os últimos raios de sol do Verão que se despede. Quase paramos de respirar. Isto dá cabo de uma pessoa! É altura de limpar discretamente o canto do olho.

Talvez não me tenha emocionado, mas pareceu mesmo que sim.


Não faltam gravações desta obra-prima da música do século XX (e não só), interpretada pelos mais variados sopranos e com orquestras dirigidas por outros tantos maestros. Já ouvi muitas, mas nenhuma me satisfaz tanto como a gravação da Philips, com o soprano Jessye Norman e com a Gewandhausorchester Leipzig, dirigida por Kurt Masur.



quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Teoria do conhecimento (ou epistemologia)


Uma das disciplinas centrais da filosofia é a epistemologia, que é também um dos temas principais do 11º ano, juntamente com a lógica e a filosofia da ciência. A pensar nisso, deixo a sugestão de um livro recentemente publicado, de Dan O'Brien, e que é precisamente uma introdução à epistemologia (ou teoria do conhecimento). Muitas secções do livro são perfeitamente adequadas para alunos do 11º ano, embora haja outras que levam a um maior aprofundamento dos problemas apresentados. 


Eis como começa o livro:

A Teoria do Conhecimento levanta certas questões muito amplas e profundas acerca dos sujeitos de conhecimento e do conhecimento em si. O que é conhecer? Como distinguir o conhecimento da mera crença? E será o conhecimento possível? A Teoria do Conhecimento é também designada epistemologia, a partir da palavra grega para conhecimento, «episteme». [...] A epistemologia continua a ser uma área de investigação vibrante, e muitas das posições e teorias que iremos examinar surgiram nas últimas décadas. Este interesse persistente na epistemologia é um reflexo da enorme importância que o conhecimento tem nas nossas vidas. Em primeiro lugar, é instrumentalmente útil: recorrendo ao conhecimento científico, por exemplo, procuramos explicar, controlar e prever o comportamento do mundo natural. Segundo, mesmo quando não tem utilidade prática, o conhecimento continua a ser encarado como algo que vale a pena obter. É bom em si mesmo. Quando, no filme A Fúria da Razão (1971), um criminoso é obrigado a entregar a sua arma ao Inspector Harry Callahan, procura depois saber se Harry ainda tinha alguma bala na pistola ou se estivera apenas a fazer bluff — «Tenho de saber». Esta informação não terá qualquer utilidade prática para o bandido — visto encontrar-se já detido, em qualquer dos casos — mas é uma forma de conhecimento que ele persegue, ainda assim.             

A Epistemologia e a Metafísica são os dois tópicos centrais da Filosofia. A primeira prende-se com a natureza e a possibilidade do conhecimento; a segunda diz respeito à natureza daquilo que existe. Alguns exemplos de questões metafísicas são: existirão coisas não-físicas? Poderão existir outras mentes além da nossa? E será que Deus existe? Veremos como todas estas questões se entrecruzam com as nossas investigações epistemológicas.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Começaram as aulas!


Começaram esta segunda-feira as aulas. Bem vindos à escola e bom trabalho. 

Se me pedirem uma sugestão para um trabalho bem sucedido ao longo do ano que agora começa, deixo a mesma de sempre: nunca cair na tentação de fazer batota com a filosofia, pois é uma disciplina que, se correctamente apresentada, torna toda e qualquer batota inútil.

Fazer batota é fingir que se está a pensar; não fazer batota é pensar realmente por si nos problemas que nos são colocados, ainda que com a ajuda dos que já pensaram nisso antes. Quando um aluno de filosofia se limita a dizer coisas que não pensa ou em que não pensou realmente, o resultado é sempre decepcionante. Claro que podemos pensar cuidadosamente e, mesmo assim, o resultado não ser satisfatório. Mas sempre é mais filosófico do que debitar palavras ou ideias em que nunca se pensou realmente.

Só há, pois, um material obrigatório para as aulas de filosofia: uma cabeça pronta a pensar. 

quinta-feira, 13 de junho de 2013

O Francisco, sobre a eutanásia.

Publiquei aqui mais um ensaio filosófico de um aluno. Desta vez é o Francisco que argumenta a favor da eutanásia. Algumas reacções ao artigo do Francisco podem ser lidas aqui.

Obrigado, Francisco. E boas férias. No próximo ano haverá mais ensaios.

Francisco Sousa, 10º H

segunda-feira, 3 de junho de 2013

A verdade a virtude

Rui Cunha ensinou para a verdade e a virtude, como defende Locke. Isto é algo que espero ter ficado registado na apresentação que fiz do livro de um amigo, que continuará a ser sempre um exemplo e uma inspiração.

Obrigado ao fantástico grupo de filosofia da minha escola pela iniciativa, à Biblioteca Municipal de Portimão pelo acolhimento, à Biblioteca da ESMTG pelo empenho, ao director da ESMTG Telmo Soares pela presença e à Drª Fernanda Virgínia Cunha pelo exemplo.

E a todos os presentes por terem feito questão de estarem lá. 


domingo, 26 de maio de 2013

Educar para a Verdade e a Virtude

Estão todos convidados para a apresentação do livro Educar Para a Verdade e a Virtude, de Rui Cunha.

A inciativa é do grupo de Filosofia da Escola Secundária Teixeira Gomes e conta com a colaboração da  Biblioteca Municipal de Portimão, local onde se realizará a apresentação, no próximo dia 31 de Maio, pelas 18:00.

Rui Cunha, que infelizmente já não está entre nós, foi professor de Filosofia desta escola, tendo deixado muitas saudades, tanto pela pessoa que era como pelas suas capacidades intelectuais. O livro é um estudo sobre a filosofia da educação de John Locke, o filósofo empirista inglês, e será apresentado por mim.

Aqui fica o convite.


quarta-feira, 24 de abril de 2013

Um clássico da filosofia da arte

Acabou de ser publicado o ensaio filosófico O Que é a Arte? (Gradiva) do grande escritor russo Lev Tolstói. O livro foi traduzido directamente do russo por Ekaterina Kucheruk, minha ex-aluna na Escola Secundária Teixeira Gomes (que está agora a concluir o seu curso de medicina em Lisboa), e tem uma introdução feita por mim. 

A definição da arte de Tolstói costuma ser estudada e discutida no 10º ano, nas turmas em que se opta pela estética.

Para os que ainda não sabem quem foi Tolstói, aqui fica a brevíssima apresentação que se encontra numa das badanas da capa do livro.


Tolstoi (1828, Iasnaia Poliana - 1910, Astapova), autor de obras universais como Guerra e Paz (1865-69), Ana Karenina (1875-77), A Morte de Ivan Ilitch (1886) ou Sonata Kreuzer (1889), é por muitos considerado um dos maiores romancistas de todos os tempos. Nascido no seio da alta aristocracia russa, pai de treze filhos e autor mundialmente reconhecido, acabou por ser assaltado pelas dúvidas próprias dos «homens inúteis» que usufruem de todo o sucesso e riqueza no meio da miséria do povo. Isso levou-o a procurar um verdadeiro sentido para a sua vida, encontrando-o numa religiosidade despojada e interior, avessa à Igreja e seus rituais, bem como numa vida simples, entre os mais simples. Foi durante este último período da sua vida que se dedicou ao ensaísmo filosófico, escrevendo sobre questões morais, religiosas, políticas e estéticas, de que se destacam Confissão (1882) e, precisamente, O  Que é a Arte? (1898).

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Cem mil

Calçada by AiresAlmeida

Calçada, a photo by AiresAlmeida on Flickr.
Este modesto blog sobre o ensino de filosofia atingiu o simpático número de cem mil visitantes. Não impressiona, mas também não é mau. Obrigado pela visita.

Para assinalar a passagem deste «equador», aqui deixo uma foto minha tirada na semana passada numa cidade muito bonita. Quem adivinha onde?

quinta-feira, 4 de abril de 2013

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Prova Oral em diferido

Aqui está o podcast com a minha participação no programa Prova Oral, de Fernando Alvim e Xana Alves, na Antena 3. Sobre filosofia, claro.

Eu e os temíveis examinadores Fernando Alvim e Xana Alves.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Saber discordar


Qual é a negação de «O João e a Joana amam-se»?

Parece fácil? Pois, mas não é. Que o digam os alunos do 10º N, que levaram algum tempo perdidos com tentativas falhadas, até chegarem à resposta certa. O que, de resto, mostra que gostam de pensar e de aprender.

Antes de dar a resposta, vale a pena dizer algo mais.

Como seria de esperar, os filósofos passam o tempo a discutir. Discutem porque discordam: aquilo que uns pensam ser verdadeiro outros acreditam ser falso. Isso é o que leva uns a negar o que outros afirmam. Por exemplo, se um filósofo A defender a tese de que temos livre-arbítrio e outro filósofo B negar tal tese, este filósofo B estará, por sua vez, a defender outra tese: a tese de que não temos livre-arbítrio. Neste caso é fácil ver que a negação da afirmação «Temos livre-arbítrio» é «Não temos livre-arbítrio». 

Mas era bom que todas as negações fossem assim tão fáceis de compreender. Algumas teses filosóficas (e não só, claro) são mais complexas, pelo que temos de ter cuidado para não nos enganarmos a negá-las, caso nos pareça que não concordamos com elas.

As teses são aquilo a que se costuma chamar «proposições», as quais são expressas por meio de frases declarativas. A primera coisa que precisamos de compreender para negar correctamente uma dada tese ou proposição é a própria noção de negação. Ora, a negação é uma relação entre proposições, sendo que duas proposições são a negação uma da outra quando não podem ser ambas verdadeiras nem podem ser ambas falsas: a verdade de uma delas implica a falsidade da outra e vice-versa. 

Por exemplo, a negação de «Alguns algarvios são inteligentes» não é, como precipitadamente certos alunos dizem, «Alguns algarvios não são inteligentes», até porque as proposições expressas por estas frases são ambas verdadeiras. Do mesmo modo, a negação da tese de que todo o conhecimento tem origem na experiência não é, como por vezes se lê até em manuais de filosofia, que nenhum conhecimento tem origem na experiência. Isto porque se, por hipótese, for verdade que algum tem origem na experiência e outro não, então ambas as proposições anteriores serão falsas. Ora isso nunca pode ocorrer entre duas proposições que se negam mutuamente.

Mas podemos dar outros exemplos complexos. Há filósofos que defendem, por exemplo, que se o determinismo é verdadeiro, então não temos livre-arbítrio (já agora, esta é conhecida como «a tese incompatibilista»). E, claro, há filósofos que discordam (os compatibilistas). O que defendem então os compatibilistas? Bom, estes defendem a negação da tese incompatibilista: que o determinismo é verdadeiro e que temos livre-arbítrio.

Regressemos agora à pergunta inicial. Parece que a negação de «O João e a Joana amam-se» é «O João e a Joana não se amam». Pois parece, mas não é!

E não é, porque ambas as proposições expressas pelas frases anteriores podem ser falsas, apesar de não poderem ser ambas verdadeiras. Para compreender melhor isto, imagine-se que o João ama, de facto, a Joana, mas que a Joana se está nas tintas para o João. Neste caso, a proposição de que o João e a Joana se amam seria falsa. Mas assim também a proposição de que o João e a Joana não se amam seria falsa, dado ser falso que o João não ama a Joana. 

Concluindo, só há uma maneira de negar a proposição de que o João e a Joana se amam, que é a seguinte: o João não ama a Joana ou a Joana não ama o João.

Às vezes as pessoas pensam que estão a negar o que outros dizem e não estão a negar coisa alguma. É por isso que precisamos de aprender a discordar.