quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Somos todos egoístas?

Foto: Aires Almeida

Eis a resposta de um filósofo à pergunta anterior. Pergunta e resposta encontram-se no interessante livro Que Diria Sócrates? (Gradiva), organizado por Alexander George. Podemos ler aí (na p. 237) o seguinte:

PERGUNTA
«Estou convencido de que todas as acções humanas são motivadas por interesse próprio: mesmo as chamadas acções altruístas são levadas a cabo com o objectivo de redimir uma culpa, ou de obter aprovação por parte de outros, ou mesmo para usufruir daquele sentimento agradável que nos preenche quando sabemos que fizemos uma coisa boa (acção que é essencialmente egoísta, considerando que o indivíduo que a pratica recebe uma recompensa espiritual, em vez de uma recompensa material). Como discordariam desta posição?»

RESPOSTA
PETER LIPTON: Há dias, estava eu a almoçar quando um diabinho poderoso me deu a escolher entre duas hipóteses: uma, os meus filhos singrarão numa vida próspera, mas eu viverei convencido de que eles vivem uma vida miserável ( o que faria sentir miseravelmente); a outra, os meus filhos viverão de facto uma vida de miséria, mas eu viverei convencido de que eles singram numa vida próspera ( o que me faria muitíssimo feliz). Assim que eu anunciar a minha escolha, a minha memória de ter feito a escolha esfumar-se-á; aliás, esfumar-se-á inclusive a minha memória de ter almoçado com o diabinho. sabe que mais? Vou escolher a hipótese «filhos felizes, eu miserável». Não sou nenhum anjo, mas este acto é altruísta.


domingo, 25 de novembro de 2012

Argumentos válidos

Foto: Aires Almeida
- Todos os argumentos bons são válidos?
- Sim, a validade é uma condição necessária para um argumento ser bom.
- E todos os argumentos válidos são bons?
- Não, a validade não é uma condição suficiente para um argumento ser bom.

Provavelmente a maior parte dos argumentos válidos não são bons, pois parece mais fácil dar exemplos de argumentos válidos que não são bons do que de argumentos válidos que sejam bons. Eis alguns exemplos de argumentos válidos que não prestam:

Exemplo 1

Deus existe.
Logo, Deus existe.

Exemplo 2

Deus existe e não existe.
Logo, Portugal fica em África.

Exemplo 3

Portugal fica em África.
Logo, Deus existe ou não existe.

Exemplo 4

Portugal fica em África.
Portugal não fica em África.
Logo, Deus existe.

Mas que são válidos, lá isso são.


terça-feira, 13 de novembro de 2012

É dia da filosofia, vamos ao cinema!

Como tem sido habitual, os professores de Filosofia da ESMTG comemoram o Dia Mundial da Filosofia tentando filosofar um pouco. A ideia é cada um de nós partilhar com os outros a sua breve reflexão sobre um tema com algum interesse filosófico. Achamos que é mais apropriado comemorar o dia tentando praticar o ofício, ainda que modestamente, do que dizer coisas bonitas sobre a importância da filosofia. O tema é diferente todos os anos e neste foi decidido que cada um deveria escolher um filme filosoficamente interessante. Eis o meu texto, sobre um filme bem antigo: Grau de Destruição (Fahrenheit 451), de François Truffaut.


Felizes dos ignorantes?


A que temperatura queima o papel? A resposta é: a 451 graus na escala de Fahrenheit. E essa é também a temperatura a que queimam os livros, que são feitos de papel. Ora, Fahrenheit 451 é precisamente o título original do filme britânico, realizado em 1966 pelo francês François Truffaut, com base no livro do célebre escritor americano Ray Bradbury (falecido no passado mês de Junho). Grau de Destruição é o (infeliz) título do filme em Portugal.

A história desenrola-se numa sociedade futura de grande conforto material, a qual é zelosamente protegida por um governo (referido como a família) cujo único objectivo é manter as pessoas felizes. Está bom de ver que a família (o governo) deve saber o que é a felicidade. Na verdade, a família sabe melhor do que ninguém o que faz os seus membros (os governados) felizes. E sabe também o que perturba a paz social e os torna infelizes. Assim, a família sabe melhor do que ninguém o que, para o bem de todos, tem de ser evitado.

Mas o que poderá perturbar a paz social e a felicidade das pessoas? A família tem a resposta: a paz e a felicidade são perturbados pelo desconforto material, mas também pelo desconforto espiritual. O problema material parece ter sido resolvido, pois as pessoas têm emprego, não passam fome, vivem em boas casas e fazem muitas compras. Mas evitar o desconforto espiritual é bem mais difícil, pois este tem origem não só no desejo insatisfeito como na incerteza da dúvida. Nada pior do que pensar em perguntas difíceis, confrontar-se com ideias divergentes e alternativas ou dar asas a uma imaginação à solta. Quer dizer, a infelicidade encontra-se no pensamento crítico, na filosofia, na literatura, na poesia, na história. Só que é isto que abunda nos livros. Daí que os livros sejam verdadeiramente perigosos, incendiando as ideias e abrindo caminho à infelicidade. Por isso têm de ser banidos. O que as pessoas realmente precisam para entreter as suas mentes é programas de televisão (vistos em enormes e elegantes aparelhos de TV) que não as intranquilizem nem as façam pensar em coisas estranhas e complicadas: por exemplo, devem entreter-se com concursos interactivos em que se tenta acertar nos títulos de canções conhecidas, e coisas do género.

Mas há um problema: não basta proibir os livros, pois podem ser lidos às escondidas. É preciso destruí-los. E essa é a tarefa dos bombeiros, que vão às casas das pessoas suspeitas, procurando-os e queimando-os com jactos de fogo à temperatura de... 451 graus Fahrenheit. É o que faz, com grande dedicação, o bombeiro Guy Montag (Oskar Werner). Até ao dia em que fica incomodado com uma leitora que prefere deixar-se queimar juntamente com os livros do que perdê-los. Intrigado, Montag decide guardar sorrateiramente um dos livros para ver o que leva algumas pessoas a correr o risco de vida por eles. A partir daí, instala-se a dúvida no espírito de Montag. Incentivado pela sua atraente e perigosa amiga Clarisse (Julie Christie), começa a pôr em causa a sua profissão e acaba ele próprio por se tornar um ávido leitor. Só que, não podendo correr o risco de guardar os livros, junta-se a um grupo secreto de resistentes homens-livro, cada um dos quais decorou um livro inteiro. Assim, cada pessoa é um livro e os resistentes são uma biblioteca. «Que livro és?», pergunta-se a um deles. «Sou A República, de Platão, querem ouvir?». Juntam-se à volta de A República e ouvem. O conhecimento e a memória da humanidade são assim preservados secretamente na intimidade dos resistentes.


Mas serão mesmo as ideias contidas nos livros fonte de infelicidade? Seremos mais felizes se nos mantivermos ignorantes e não formos questionadores? Quem sabe, afinal, o que nos faz felizes? Este é um filme que ilustra bem a tese de que, em nome da felicidade geral e de uma concepção oficial do que é o bem, se podem urdir muitos totalitarismos bem intencionados. Como se antevê também em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell e em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.                            

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Heaven (Céu)

Quase apostava que não chega a 1% o número de alunos que conhecem ou ouvem a música dos Talking Heads. Foram uma verdadeira revelação na música rock do fim dos anos 70 do século passado e o seu sucesso confirmou-se amplamente ao longo das duas décadas seguintes. Vale a pena ouvir e, já agora, pensar um pouco na letra desta canção, intitulada Heaven (Céu). David Byrne, o cantor, diz que o Céu é um lugar onde todos querem entrar. Mas acrescenta que é um lugar onde nunca nada acontece. 

Bom, David Byrne está a falar de um bar que se chama Heaven. Mas será que esse bar não poderia, afinal, ser o Céu de que as religiões falam e onde todos querem entrar e ficar para sempre? E se for o Céu da eternidade, terá ele razão ao cantar que é o lugar onde nunca acontece nada? Bem vistas as coisas, se temos toda a eternidade pela frente, porquê fazer já seja o que for? Haverá sempre tempo para o fazer, pelo que se pode esperar infinitamente. Assim, talvez não aconteça mesmo nada e aqueles que dizem ser o Céu um lugar de tédio interminável tenham mesmo razão. Nesse caso, o argumento de que é a vida eterna que nos espera após a morte a dar sentido às nossas vidas não é lá muito persuasivo. Ou será?

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Cepticismo radical: o solipsismo.


Uma forma radical de cepticismo é o solipsismo. Mas há outras formas radicais de cepticismo. Talvez volte a esta ideia mais tarde. Por agora, deixo um texto sobre o cepticismo acerca do mundo exterior defendido pelos solipsistas, retirado do excelente livro Que Quer Dizer Tudo Isto? (Gradiva), do filósofo Thomas Nagel. A passagem encontra-se no capítulo 2, intitulado: Como sabemos seja o que for? (páginas 12-15)

Seja o que for em que acredites -- quer seja sobre o Sol, a Lua e as estrelas, a casa e o bairro em que vives, a história, a ciência, as outras pessoas, até mesmo a existência do teu próprio corpo --, é baseado nas tuas experiências e pensamentos, sentimentos e impressões dos sentidos. É só a isso que tens acesso directo, quer vejas o livro nas tuas mãos, sintas o chão debaixo dos teus pés, ou te lembres que D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal, ou que a água é H20. Tudo o resto está mais afastado de ti do que as tuas experiências e pensamentos internos e é só através destes que te alcança.
Normalmente não tens dúvidas sobre a existência do chão debaixo dos teus pés, ou da árvore que está lá fora, ou dos teus próprios dentes. De facto, a maior parte do tempo nem sequer pensas nos estados mentais que te tornam consciente dessas coisas: parece que tens consciência directa delas. Mas como sabes que elas existem realmente?
Se tentares argumentar que tem de existir um mundo físico exterior porque não verias prédios, pessoas ou estrelas, a menos que existissem coisas lá fora que reflectissem ou lançassem luz para os teus olhos, causando assim as tuas experiências visuais, a resposta é óbvia: como sabes isso? Trata-se apenas de outra afirmação acerca do mundo exterior e da tua relação com ele, que tem de ser baseada nos dados dos teus sentidos. Mas só podes confiar nesses dados específicos acerca de como as experiências visuais são causadas se já puderes confiar em geral nos conteúdos da tua mente como fonte de informação acerca do mundo exterior. E isso é exactamente o que está a ser questionado. Se tentas provar a credibilidade das tuas impressões apelando para as tuas impressões, estás a argumentar de forma circular e não chegas a lado algum. 
Será que as coisas te pareceriam diferentes se de facto tudo existisse apenas na tua mente -- se tudo o que tomas como o mundo real exterior fosse apenas um sonho gigante, ou uma alucinação, de que nunca vais acordar? Se assim fosse, então é claro que não poderias acordar, tal como acontece quando sonhas porque não haveria qualquer mundo «real» no qual pudesses acordar. Portanto, não seria exactamente como num sonho normal ou numa alucinação. Usualmente, pensamos que os sonhos têm lugar em mentes de pessoas que estão de facto deitadas numa cama real numa casa real, mesmo que no sonho estejam a fugir de uma máquina de aparar relva homicida pelas ruas de Sobral de Montagraço. Admitimos igualmente que os sonhos normais dependem do que está a acontecer no cérebro do sonhador enquanto dorme.
Mas não poderiam todas as tuas experiências ser como um sonho gigante, sem nenhum mundo exterior fora dele? Como podes saber que não é o que se passa? Se toda a tua experiência fosse um sonho sem nada lá fora, então todos os dados que tentasses usar para provar a ti próprio que existe um mundo exterior seriam apenas parte do sonho. Se batesses na mesa ou se te beliscasses, ouvirias o som e sentirias o beliscão, mas isso seria apenas mais uma ocorrência no interior da tua mente, tal como tudo o resto. Não vale a pena: quando queres saber se o que está dentro da tua mente pode ser um guia para o que está fora dela, não podes apoiar-te na maneira como as coisas parecem -- a partir do interior da tua mente -- para te darem a resposta.
Mas em que mais podes apoiar-te? Todos os teus dados acerca do que quer que seja têm de vir através da tua mente -- quer na forma de percepção, de testemunhos de livros e de outras pessoas, ou da memória -- e tudo aquilo de que tens consciência é inteiramente consistente com a hipótese de que não existe absolutamente nada além do interior da tua mente.
É mesmo possível que não tenhas um corpo nem um cérebro -- uma vez que as tuas crenças acerca disso vêm unicamente dos dados dos teus sentidos. Nuca viste o teu cérebro -- admites apenas que toda a gente tem um --, mas, mesmo que o tivesses visto, ou pensado que o tinhas visto, isso teria sido apenas mais uma experiência visual. Talvez tu, o sujeito dessa experiência, sejas a única coisa que existe, e, de qualquer modo, talvez não exista mundo físico -- nenhumas estrelas, nenhuma terra, nenhuns corpos humanos. Talvez nem sequer exista qualquer espaço.
A conclusão mais radical a tirar daqui seria a de que a tua mente é a única coisa que existe. Esta posição chama-se solipsismo. É uma posição muito solitária, e não houve muitas pessoas que a sustentassem. Como podes aperceber-te por este comentário, eu próprio não a sustento. Se fosse solipsista, provavelmente não estaria a escrever este livro, uma vez que não acreditaria que existem pessoas para o lerem. Por outro lado, talvez o escrevesse para tornar a minha vida interior mais interessante, incluindo, assim, a impressão da aparência do livro publicado, de outras pessoas a lê-lo e a comunicarem-me as suas reacções, e assim sucessivamente. Poderia até ter a impressão de receber direitos de autor, se tivesse sorte.
Talvez tu sejas um solipsista: nesse caso, considerarás este livro como um produto da tua própria mente, começando a existir na tua experiência à medida que o fores lendo. Obviamente, nada do que eu possa dizer poderá provar-te que existo realmente, ou que o livro existe enquanto objecto físico.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

O Cônsul de Bordéus e a desobediência civil

Haverá casos em que violar a lei é moralmente justificado? Esta é uma questão filosófica e é conhecida como a questão da desobediência civil. Há vários filmes que abordam este problema e o Cônsul de Bordéus, de Francisco Manso e João Correa, talvez seja um deles. A estreia do filme nas salas de cinema está anunciada para breve e conta a história do diplomata português Aristides Sousa Mendes, cônsul de Portugal na cidade francesa de Bordéus durante a Segunda Guerra Mundial. Muito resumidamente, Aristides Sousa Mendes passou milhares de vistos a judeus perseguidos pelos nazis, de modo a poderem fugir aos campos de concentração e às câmaras de gás, salvando assim milhares de vidas. Mas para isso teve de desobedecer repetidamente ao governo português, sabendo que iria ser severamente punido, como veio depois a acontecer.  

Entretanto, ficam aqui com algumas imagens do filme. 

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Um guia das principais disciplinas da filosofia


Este não é bem um livro destinado a alunos do ensino secundário, apesar de se tratar de um livro introdutório. Mas também não é inacessível a alunos que tenham um interesse particular na filosofia e pode dar uma ideia mais precisa, e talvez até mais rigorosa, do que algumas introduções mais sumárias podem proporcionar. O livro, coordenado por Pedro Galvão, da Universidade de Lisboa (e co-autor dos manuais adoptados na nossa escola), inclui capítulos que introduzem os leitores às disciplinas filosóficas abordadas no programa do secundário (entre outras disciplinas): lógica, ética, filosofia da acção, epistemologia, filosofia da religião, filosofia da ciência, filosofia política e estética. Este último foi escrito por mim. 

Fica aqui a sugestão, para aqueles que quiserem avançar um pouco mais longe no estudo da filosofia.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

A clonagem humana é eticamente inaceitável, argumenta a Oxana



Este ensaio discute se a clonagem humana é uma prática eticamente aceitável ou não. A posição aqui defendida é que a clonagem não é moralmente admissível.
Irei abordar apenas a clonagem humana reprodutiva e não a clonagem terapêutica. Em primeiro lugar, é necessário perceber o que é a clonagem e como funciona. A clonagem é um processo que permite a criação de indivíduos geneticamente iguais, isto é, com o mesmo ADN. Ao contrário da reprodução natural, que resulta da junção do material genético de ambos progenitores (o óvulo funde-se com o espermatozóide), a clonagem é uma reprodução assexuada, ou seja, não recorre ao acto sexual, e o material genético dos descendentes é igual ao do procriador. Quando é feita para fins reprodutivos, a clonagem realiza-se por transferência nuclear, que consiste na junção do núcleo de uma célula com um ovócito enucleado. Este óvulo é depois estimulado, o que o leva a dividir-se e a desenvolver-se, transformando-se depois num embrião que pode ser transferido para o útero de uma fêmea/mulher. O indivíduo que daí surgir, será um clone, uma cópia genética do dador do núcleo.
Existem várias objecções à clonagem humana reprodutiva, tais como: o argumento das relações familiares (um clone traria mudanças a nível familiar, pois as relações familiares seriam artificiais e anómalas), o risco da instrumentalização (a clonagem humana fomenta a instrumentalização dos seres humanos que serão utilizados pelos progenitores para a concretização de objectivos que eles próprios não atingiram) e o apelo à natureza (a clonagem humana é antinatural), entre outros. Porém, estes argumentos são fáceis de descartar. Actualmente existem outros modelos de família além das tradicionais (mãe, pai e filhos), como por exemplo as famílias homossexuais, os divórcios, os segundos casamentos e as adopções, que são capazes de satisfazer as necessidades afectivas e emocionais dos seus membros e, deste modo, a família à qual pertencerá o clone não irá ser muito diferente da família convencional. O próprio conceito de natureza não é completamente claro e a fronteira entre o que é natural e o que é contranatural não foi estabelecida, já para não referir que, aceitando este argumento, teríamos de excluir também as várias formas de reprodução assistida e outras intervenções médicas. Assim, o argumento de que a clonagem é antinatural acaba por ser pouco persuasivo.
Porém existem outros argumentos que são bastante mais fortes  e que corroboram a minha posição: o argumento da identidade, o argumento da eugenia e o argumento dos custos humanos. Os defensores do argumento da identidade afirmam que a clonagem reprodutiva é eticamente errada porque implica a perda de identidade do clone e fere a sua dignidade. A objecção a este argumento é que a clonagem não iria produzir cópias iguais da mesma pessoa, apenas iria produzir indivíduos com o mesmo ADN, com o mesmo genótipo, como acontece com os gémeos idênticos. Visto que estariam enquadrados em meios diferentes, o clone e o seu dador iriam ter personalidades e mentalidades diferentes, ou seja, não seriam a mesma pessoa. Ainda assim, e de acordo com os apoiantes da clonagem, esta prática só seria permitida com o consentimento do seu dador. Ora, se o genótipo não é identidade, por que razão haveria o dador de impedir a criação de um clone seu? Se esse clone não é o dador e o dador não é o clone porque é que o dador teria de consentir que fosse clonado? Isto significa que o ADN é muito importante para a identidade de um indivíduo e, à luz desta ideia, teríamos de rever qual é afinal a identidade de um clone e de que modo isso irá influenciar o próprio clone e a sociedade.
Outro argumento que se opõe a clonagem é o argumento do perigo da eugenia. A eugenia é uma tentativa de manipular as características genéticas de um ser, seleccionando e eliminando os embriões com características indesejáveis (doenças físicas e mentais graves) e acrescentando características desejáveis (beleza, inteligência) aos mesmos, de forma a melhorá-los. A eugenia é uma ideia bastante real, já que actualmente a modificação do genoma é muito praticada, especialmente na produção de alimentos transgénicos (organismos geneticamente modificados) que aguentam melhor as pragas e têm um rápido crescimento. De acordo com os defensores deste argumento, a clonagem poderá facilitar a eugenia positiva e o seu possível uso malévolo. A preocupação geral da eugenia não é tanto a criação de exércitos de clones (o que também é um risco), é a comercialização dos próprios clones e a sua escravização. A facilidade de utilização dos clones na escravatura é possibilitada pelo facto de os clones serem cópias genéticas de pessoas já existentes, ou seja, nada, nem ninguém “daria por falta” de um clone. Actualmente existe uma grande possibilidade de um movimento eugénico ser cuidadosamente preparado, pelas grandes empresas e potências comerciais, longe dos olhos públicos. Na verdade, empresas que estão encarregadas de assegurar a clonagem humana, como a Geron e Advanced Cell Thecnology, já estão patenteadas por outras empresas internacionais, o que lhes dá o direito legal de propriedade sob os futuros clones humanos e as células humanas estaminais. A criação dos clones trará negócios bastante vantajosos para estas empresas, já que seriam também um óptimo banco de órgãos. Algumas pessoas poderão dizer que não há uma ligação necessária entre a clonagem humana e a eugenia. Contudo, essa possibilidade existe. Se nem mesmo a exploração infantil de crianças é capaz de travar as ambições económicas das potências comerciais, como podemos ter a certeza de que os clones (com as características necessárias) não serão utilizados para o mesmo propósito? A clonagem humana reprodutiva só seria possível se tivéssemos a completa certeza de que os clones humanos não iriam ser utilizados para proveito de determinadas entidades ou pessoas. Mas como no mundo actual isso ainda não está garantido, a clonagem seria eticamente errada.
Outra objecção à clonagem humana reprodutiva é o argumento dos custos humanos. Este argumento parte da premissa de que a técnica da clonagem humana reprodutiva, no seu actual estado, produz inevitavelmente muitos indivíduos defeituosos, com sérios problemas físicos e mentais. É verdade que a taxa de sucesso da clonagem é extremamente baixa, pois cerca de 95% à 98% das tentativas resultam em abortos ou malformações. A ovelha Dolly (o primeiro mamífero a ser clonado) foi a única sobrevivente das 227 tentativas de clonagem que foram feitas, para além de que morreu prematuramente com 6 anos, quando a média de vida era 12. Sendo assim, será que os eventuais benefícios da clonagem compensam a destruição de tantos embriões, fetos e possivelmente clones bebés acabados de nascer? Quem irá assumir a responsabilidade de destruição de uns e a sobrevivência de outros? E quem nos irá garantir que os clones bebés não nascerão com mutações ou doenças congénitas e que tenham uma vida tão longa como a de um ser humano? Sem respondermos com convicção a estas questões, não podemos tomar a clonagem humana reprodutiva como eticamente correta. Apesar de a clonagem poder ser uma resposta para a infertilidade, tendo em conta os custos e os riscos que este processo implica, não deve ser vista como a única alternativa. Decerto que haverá outras opções mais fiáveis.
Avaliando todos estes argumentos, compreende-se que a clonagem humana é um processo que ainda não foi desenvolvido, e é incerto, pelo que os seus riscos (sociais e étnicos) são muito elevados. A ciência realiza a experiência sem ter compreendido na totalidade o que é o ADN, como é composto, como funciona e que consequências tem, provando até ao momento a sua ineficácia. A clonagem é apenas um dos processos e será boa ou má dependendo do seu uso. Como ainda não se encontrou uma técnica de clonagem totalmente fiável e a sua taxa de sucesso é muito baixa, penso que tal prática não é eticamente aceitável.

Oxana Dimova, 11º N

Muito obrigado à Oxana pelo seu ensaio e pela autorização para o divulgar aqui.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Cientificidade

Foto de Aires Almeida

A propósito da solução de Karl Popper  para o chamado "problema da demarcação" um aluno mostrou-me um apontamento colhido não sei bem onde, no qual se dizia o seguinte:

Popper defende que uma teoria é científica se, e só se, for empiricamente falsificável.

A minha pergunta é: acham isto correcto? Será mesmo isso que Popper defende? Eu acho que isto está errado. E o leitor concorda comigo? Porquê?

segunda-feira, 12 de março de 2012

Moral, para que te quero? Outra vez

Foto: Aires Almeida

A resposta referida na postagem anterior, é uma boa resposta? 

Note-se que não basta afirmar algo verdadeiro para que a resposta seja satisfatória. É também preciso que responda ao que, de facto, está em causa. Por exemplo, se alguém me perguntar qual é o atleta mais veloz do mundo e receber como resposta que Francis Obikwelu é um atleta muito veloz, não obtenho a resposta correcta, apesar de a afirmação ser verdadeira. 

Ora, passa-se algo semelhante com a resposta do aluno à pergunta sobre se haveria alguma razão para não roubar, caso ele tivesse a garantia de que ninguém iria alguma vez descobrir tal coisa. A resposta do aluno foi que, caso ninguém soubesse disso, não seria vergonha roubar. 

Em primeiro lugar, é verdade que vergonha não é roubar, mas sim roubar sem ser apanhado. Isto é assim porque o sentimento de vergonha por algo que fazemos envolve sempre a crença de que alguém sabe que fomos nós a fazê-lo. Portanto, se não acreditamos que alguém sabe disso, também não há qualquer razão para ter vergonha. O mesmo se passa, por exemplo, com o medo. Eu só posso ter medo de ser atacado se acreditar que há algo ou alguém que me pode atacar. Se acreditar mesmo que não há por perto qualquer ser que me possa atacar, então deixa de haver qualquer razão para ter medo. 

Só que o aluno ainda não está a responder à pergunta colocada, pois esta não é sobre se isso é ou não é vergonhoso, mas sobre se há ou não razões para o não fazer mesmo que tenhamos a certeza de que não seremos apanhados. Claro que podemos dizer que ele está no fundo a defender que a única razão para não roubar seria apanhar uma grande vergonha e que, visto estar livre de a apanhar, deixa de haver razão para não roubar. Logo, caso tivesse o anel de Giges colocado, não veria qualquer justificação para agir moralmente (não roubando, não mentindo, não faltando às suas promessas, etc.) No fundo, não teríamos qualquer razão para ser morais. 

Contudo, isto não é ainda satisfatório, pois podemos agora perguntar ao aluno por que razão haveria ele de sentir vergonha por ser apanhado a roubar. Por causa da censura dos outros? Mas não poderia estar-se nas tintas para o que os outros pensam disso? E, já agora, por que razão hão-de os outros achar vergonhoso roubar? Enquanto não conseguir dar uma resposta satisfatória a estas perguntas, o aluno ainda não terá conseguido defender adequadamente a sua ideia de que não há qualquer razão para sermos morais. 

Em suma, o aluno disse algo verdadeiro, mas ainda não respondeu adequadamente à pergunta. Seja qual for a resposta correcta.

Concordam?

quarta-feira, 7 de março de 2012

Moral, para que te quero?

Foto: Aires Almeida

Por que razão havemos de ser morais, se isso parece ser muitas vezes desvantajoso para nós próprios? Não é verdade que, por vezes, seria vantajoso para nós não cumprirmos as nossas promessas? Não seria muitas vezes vantajoso para nós mentir ou até roubar?

Algumas pessoas respondem que, ao contrário do que parece, nunca é vantajoso para nós roubar, mentir ou deixar de cumprir as nossas promessas. Bem vistas as coisas, dizem, nunca podemos estar seguros de que os outros não venham a descobrir isso, pelo que isso acabará, mais tarde ou mais cedo, por se voltar contra nós próprios: sermos presos, não sermos levados a sério pelas outras pessoas ou elas deixarem de se relacionar connosco.

E se tivéssemos a certeza absoluta de que as pessoas nunca iriam descobrir que roubávamos, que mentíamos e que não cumpríamos as nossas promessas? E se tivéssemos, como refere o filósofo Platão, uma espécie de anel mágico -- o anel de Giges -- que quando é colocado no dedo torna as nossas acções indetectáveis pelos outros? Poderíamos, então, fazer tudo o que fosse mais vantajoso para nós, desde roubar, mentir ou não cumprir as promessas feitas sem qualquer receio de virmos a ser descobertos. Será que, nesse caso, não teríamos qualquer razão para não roubar, não mentir e não faltar à nossa palavra? 

Fiz esta pergunta aos alunos do 10º ano numa aula. E, ao contrário do que alguns possam esperar, as respostas não foram todas no mesmo sentido -- o que não é novidade. Houve mesmo quem afirmasse seriamente que, caso tivesse a certeza absoluta que não seria apanhado, não via qualquer razão que o impedisse de roubar, de mentir e de faltar à sua palavra. A ideia é que não há qualquer razão para sermos morais, a não ser o receio de os outros levarem isso a mal e de, assim, nos complicarem a vida.

Procurando certificar-me melhor da posição do aluno, perguntei: 
-- Serias capaz de roubar algumas das pessoas que estão aqui, caso tivesses a certeza absoluta que não serias apanhado?
-- Na boa! -- esclareceu o aluno.
-- Sem qualquer problema?
-- Problema porquê, professor? Aprendi que não é vergonha roubar; vergonha é roubar e ser apanhado.
Terá o aluno razão? Se não tiver, como se lhe pode responder?

A minha resposta fica para outra postagem. Adianto apenas que a última afirmação do aluno é verdadeira, mas não tem razão. Estranho? E qual é a vossa opinião?


quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Filósofos e banalidades

Foto de Aires Almeida

Eis duas afirmações que encontrei em respostas de alunos a perguntas dos testes (uma delas num teste do 10º ano e outra num teste do 11º ano):

1. A teoria filosófica do subjectivismo moral caracteriza-se por defender que há diferentes opiniões sobre o que é moralmente correcto e o que é moralmente errado. 
2. Uma das coisas que Descartes quer mostrar com o cogito é que para pensar é preciso existir.

É fácil imaginar a que perguntas se está a responder, mas não é isso que interessa agora. Prestemos antes atenção ao que se diz e pensemos se as afirmações anteriores são filosoficamente interessantes, ou sequer informativas.

Em 1 diz-se que há diferentes opiniões sobre questões morais. Mas haverá alguém que discorde disso? Qualquer pessoa sabe isso. Não precisamos de filósofos para descobrirmos tal coisa. Que há pessoas com opiniões diferentes sobre este e outros assuntos parece óbvio. Basta ouvir o que elas dizem e observar como discordam umas das outras. Assim, defender que há opiniões diferentes sobre o mesmo assunto é afirmar uma banalidade que dispensa qualquer justificação, uma vez que se trata de algo que qualquer pessoa pode observar directamente.

Em 2 diz-se que para pensar é preciso existir, e que é disso que o filósofo em causa nos quer convencer. Mas, mais uma vez, será preciso um filósofo reflectir tanto e gastar tantas das suas energias para mostrar o que, afinal, já toda a gente sabe? Claro que para pensar é preciso existir, tal como para tossir ou espirrar é preciso existir. Um filósofo que se dedique a convencer-nos de tal coisa não passaria certamente de um tolo.

Mas os filósofos não costumam ser tolos, pois não é suposto existirem para afirmar banalidades.

Se os filósofos e as teorias filosóficas servissem para nos mostrar o que já sabemos sem precisarmos sequer de filosofar, então os filósofos e as teorias filosóficas não serviriam de nada. Nesse caso, sim, aqueles que acusam os filósofos de defenderem tolices, apelidando-os de lunáticos, teriam alguma razão. Mas muitas pessoas chamam tolos e lunáticos aos filósofos precisamente porque pensam, erradamente, que eles se dedicam a dizer coisas como essas. É o que acontece quando interpretam apressadamente algumas das suas afirmações mais famosas, como «Penso, logo existo», «Só sei que nada sei» ou «O homem é a medida de todas as coisas».

Parece, então, claro que os subjectivistas morais não se caracterizam por defenderem que há diferentes opiniões sobre o que é moralmente correcto ou incorrecto. Isso é algo que tanto o subjectivista como o objectivista dão como certo. E também não é verdade que o objectivo do cogito cartesiano seja o de mostrar que para pensar é preciso existir.

Assim, o que recomendo aos alunos de filosofia quando lêem ou escrevem algo que lhes pareça uma banalidade, é que voltem atrás e pensem melhor nisso: talvez estejam a compreender mal as coisas e a tirar conclusões precipitadas. Não porque os filósofos estejam livres de dizer banalidades (por vezes, acontece encontrarmos filósofos que, por detrás de um palavreado complicado, acabam por dizer coisas que verificamos serem, afinal, banais), mas porque não é suposto os filósofos fazerem tal coisa. Aliás, se descobrirmos que um filósofo está, afinal, a dizer banalidades, esse filósofo deixa de ter interesse filosófico. Ora, é pouco provável que a maioria dos filósofos, sobretudo os que têm sido minuciosamente estudados e aqueles cujas teorias têm sido amplamente escrutinadas, como é o caso de Descartes, digam banalidades tão desinteressantes. 

Mas só verificamos que estamos perante banalidades filosoficamente desinteressantes quando estamos a pensar mesmo no que lemos, dizemos ou escrevemos. É por isso que o mais importante para um estudante de filosofia não é tanto estudar (também é, sim, também é!), mas pensar cuidadosamente nas coisas. Dá trabalho, mas correm-se menos riscos de dizer disparates. 

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Os animais têm direitos?


A XIII Conferência de Filosofia da Teixeira Gomes foi um sucesso, tanto pelo interesse despertado no público, que encheu o auditório, como pela qualidade da comunicação proferida pelo conferencista Pedro Galvão, da Universidade de Lisboa. Pedro Galvão, especialista em ética, é organizador de vários livros na área da ética prática (a que também se chama «ética aplicada»), entre os quais se conta precisamente Os Animais têm Direitos? Perspectivas e Argumentos (Dinalivro, 2010). Assim, a qualidade e a clareza da comunicação proferida não foi inteiramente surpreendente.

A primeira coisa a sublinhar é que se tratou de uma conferência de filosofia e não de uma sessão de campanha a favor ou contra os direitos dos animais. Assim, o conferencista procurou apresentar as principais perspectivas acerca dos direitos dos animais não humanos, fossem a favor ou contra, e os principais argumentos em que tais perspectivas se apoiam, sem deixar de fazer a sua própria avaliação crítica e fundamentada de cada uma dessas perspectivas: a perspectiva tradicional (Kant e outros), a perspectiva utilitarista clássica (Bentham, Singer e outros), a perspectiva deontologista (Tom Regan) e, finalmente, a perspectiva do utilitarismo de regras (defendida pelo próprio conferencista).

Pedro Galvão começou por fazer três advertências de carácter teórico. 

A primeira é que, ao falar de direitos, o que estava em causa não eram os direitos legais, mas os direitos morais. Trata-se de coisas muito diferentes, pois para sabermos se os animais têm, num dado país, direitos legais, e quais são esses direitos, é apenas uma questão de consultar a legislação desse país sobre a matéria. Não há aí lugar a qualquer discussão filosófica. Mas se alguém tiver, por exemplo, o direito moral à liberdade, então nem nos países onde a lei não reconhece o direito à liberdade das pessoas (nos países com regimes autoritários e ditatoriais) esse direito se extingue: mesmo que não tenham legalmente o direito à liberdade podem ter o direito moral à liberdade.

A segunda é que, ao falar de animais não humanos, não se está a pensar em todos os animais, mas apenas em alguns. A diversidade de espécies animais é tão grande e as suas características tão diferentes, que não seria correcto incluí-las todas. Assim, não se incluem animais como, por exemplo, os insectos e a maior parte dos peixes. Do que se está a falar é sobretudo de mamíferos e aves, cuja complexidade neurológica e cerebral permite afirmar, sem grandes dúvidas, que têm alguma forma de senciência (capacidade de sofrer e de ter prazer) e algum grau de consciência de si. Isto é crucial, pois o facto de serem sencientes e autoconscientes (características que se podem ter em graus diferentes), permite concluir que esses animais, ao contrário dos outros, têm interesses, nomeadamente o interesse de não sofrer.

A terceira é que a expressão «ter direitos» é ambígua, podendo ser interpretada de duas maneiras diferentes, uma num sentido mais amplo e outra num sentido mais estrito. Num sentido amplo, dizer que um indivíduo ou espécie têm direitos significa que esse indivíduo ou espécie têm estatuto moral -- que são dignos de consideração moral. Num sentido mais estrito, dizer que um indivíduo ou espécie têm direitos, significa que esse indivíduo ou espécie têm direitos deontológicos, isto é, direitos invioláveis. Sendo assim, haveria duas questões que precisavam de resposta: se, por um lado, os animais não humanos têm estatuto moral e se, por outro lado, eles têm direitos deontológicos. Quem pensar que os animais têm direitos deontológicos, aceita implicitamente que eles têm estatuto moral, mas o inverso não acontece: podemos achar que eles têm estatuto moral e não concordar que têm direitos deontológicos. Assim, defender que os animais têm direitos deontológicos é defender uma tese mais forte do que a tese de que eles têm apenas estatuto moral. Portanto, dizer que têm estatuto moral é defender que os seus interesses devem ser considerados, mas não que sejam necessariamente satisfeitos. Estas questões colocam-se também acerca dos seres humanos, pelo que é esclarecedor pensar nisso também.

Afinadas estas questões prévias e feitas as distinções conceptuais necessárias, Pedro Galvão partiu então para a caracterização e discussão de quatro das mais importantes perspectivas sobre os direitos dos animais, sem deixar de referir que há outras que mereceriam atenção.

A primeira, a que deu o nome de «tradicional», não reconhece estatuto moral aos animais não humanos. A ideia é que os animais existem com a finalidade de servir os seres humanos e de ser por eles dominados, como alegadamente refere a Bíblia, mas também Aristóteles e Tomás de Aquino, entre outros. Esta ideia, apesar de ser amplamente partilhada, não deixa de ser estranha, como sublinhou Pedro Galvão: como podem os animais estar ao serviço dos seres humanos se no longo percurso da evolução das espécies os seres humanos surgiram muitíssimo depois de milhares de outras espécies animais, muitas delas entretanto extintas? Será que, por exemplo, os dinossauros foram criados com a finalidade de servirem os seres humanos e de serem dominados por estes? Esta visão antropocêntrica tem, contudo, uma versão menos radical, defendida pelo filósofo iluminista alemão Immanuel Kant. Este filósofo afirmava que o princípio fundamental da moral se baseia na razão, a qual nos manda tratar os nossos semelhantes como fins e nunca como meios, impedindo-nos de os instrumentalizar e de, assim, ferir a sua humanidade. Tratar os nossos semelhantes, e a nós próprios, como fins equivale a respeitar a autonomia de cada ser humano, considerando que as pessoas têm direitos invioláveis. Mas não poderemos ferir a humanidade de quem não é ser humano, pelo que os outros animais nem sequer fazem parte do universo da moralidade. A não ser indirectamente: temos deveres indirectos para com os animais na medida em que maltratar um animal implica prejudicar o seu proprietário. No caso de alguém maltratar o seu próprio animal em público, então estará a ferir a susceptibilidade de outras pessoas, que serão obrigadas a assistir a cenas que lhes são desagradáveis. Mas se for o próprio dono de um animal a maltratá-lo longe de olhares alheios? Nesse caso, alega Kant, estará a fazer algo que degrada o seu próprio carácter, pelo que estará a fazer mal a si próprio, o que também não é moralmente aceitável. Assim, Kant conclui que, em geral, é errado maltratar os animais, mas daí não se segue que eles tenham estatuto moral.  

A perspectiva tradicional foi posta em causa pelo fundador do utilitarismo, o britânico Jeremy Bentham. O princípio moral fundamental dos utilitaristas é que uma acção é moralmente boa se o bem-estar for superior ao mal-estar daí resultante, de um ponto de vista imparcial. Acresce que para os utilitaristas como Bentham o bem estar (ou felicidade) consiste no prazer e na ausência de sofrimento. Bentham irá, então, argumentar que aquilo que determina se um ser tem estatuto moral não é a racionalidade, mas a senciência: o que importa não é se os animais podem raciocinar ou falar, mas se os animais podem sofrer. O que há de errado em maltratar uma pessoa ou um animal não é ele ser capaz de reflectir sobre isso ou de ser capaz de o verbalizar, mas o facto dessa pessoa ou animal sentirem dor e estarem, por isso, a sofrer -- quer esse sofrimento seja físico ou psicológico. Ora, neste particular, não há qualquer diferença entre os seres humanos e alguns animais não humanos. Assim, alguns animais têm estatuto moral do mesmíssimo modo que os seres humanos o têm e não há qualquer razão para estabelecer diferença entre uns e outros. Qualquer outra diferença seria moralmente arbitrária. Mas, dado que tudo o que conta para a moralidade é a maximização do bem-estar geral, não pode haver direitos invioláveis, pois isso iria colocar limites à maximização do bem-estar. Logo, nem sequer os seres humanos têm direitos deontológicos. Isto parece ter consequências indesejáveis, pois teríamos de considerar como moralmente aceitável matar uma pessoa saudável para lhe retirar os seus órgãos e com eles salvar a vida a meia-dúzia de pessoas que deles necessitassem, o que contribuiria para maximizar o bem-estar geral. Mas isso parece ir contra as nossas mais firmes intuições morais; parece-nos que há direitos que simplesmente não podem ser violados e que há direitos que são moralmente mais importantes do que a maximização do bem-estar geral. O problema agora passa a ser o seguinte: se os seres humanos têm direitos deontológicos, então não se percebe o que impediria os animais de os terem também. Ora, isso é um problema porque implicaria alterar radicalmente o modo como tratamos os animais, contrariando as nossas intuições de que há diferenças de estatuto moral entre seres humanos e animais.

Mas o deontologista americano Tom Regan defende precisamente que não há qualquer diferença de estatuto moral entre uns e outros, defendendo que animais e seres humanos têm direitos invioláveis. Esta foi a terceira perspectiva discutida. Regan afasta-se do deontologismo clássico de Kant porque isso implicaria negar estatuto moral a seres humanos desprovidos das suas faculdades racionais, como é o caso dos deficientes mentais profundos e de idosos que perderam as suas faculdades racionais, entre outros. Ora, se queremos incluir esses casos dentro da esfera de seres dignos de consideração moral, então o critério de atribuição de direitos não pode ser o da racionalidade. Qual é, então, esse critério? Regan responde que é o de ser sujeito de uma vida: ter uma vida com um grau razoável de unidade psicológica. Ser sujeito de uma vida não é apenas viver. Em vez de uma vida à qual se vão acrescentando momentos uns a seguir aos outros sem nada que os ligue, aquele que é sujeito de uma vida consegue ligar esses momentos numa unidade, sendo capaz de ter memórias de momentos passados, expectativas sobre o que se segue, desejos, medos, etc. Ora, isso verifica-se não só nos seres humanos, mas também em alguns animais. Assim, certos direitos, como o direito à vida, à liberdade e à integridade corporal são invioláveis, tanto no caso dos seres humanos como no caso de alguns animais. Deve-se, pois, acabar imediatamente com a criação e abate de aves e mamíferos na indústria alimentar, com as touradas, os circos com animais, os jardins zoológicos, as gaiolas, as corridas de cães, etc. Pedro Galvão considerou esta perspectiva demasiado radical. Seria, de resto, interessante discutir se, de acordo com Regan, as pessoas que padecem da doença de Alzheimer em estado avançado são realmente sujeitos de uma vida e, portanto, se serão dignos de consideração moral.


A última perspectiva foi a defendida pelo próprio conferencista. Trata-se de uma perspectiva utilitarista, mas diferente do utilitarismo clássico, que tem em conta as consequências de cada acto isoladamente. Ao invés, o que conta nesta perspectiva utilitarista são as consequências que resultam da adopção de diferentes códigos morais, isto é, de diferentes sistemas de regras morais. Pedro Galvão pensa que os seres humanos têm direitos deontológicos, mas não os animais. Mas também defende que alguns animais têm estatuto moral, afastando-se assim das três perspectivas anteriores. 

Não vou adiantar aqui mais pormenores, que Pedro Galvão sumariou na sua conferência. Em vez disso, fica aqui a sugestão de lerem o que Pedro Galvão vai publicando sobre o assunto. Vale mesmo a pena.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Os fundamentos da moral

Foto de Aires Almeida

Praticamente todas as pessoas fazem a distinção moral entre o bem e o mal, o certo e o errado, o que se deve e não deve fazer. Mas de onde nos vêm as ideias de bem e de mal, do certo e do errado? O que justifica tais distinções? Numa palavra, quais os fundamentos da moral?

Eis algumas respostas possíveis.

Algumas pessoas pensam que a moral se baseia nos sentimentos e opiniões de cada sujeito, havendo assim diferentes critérios, todos eles aceitáveis, para distinguir o que é moralmente certo do que é moralmente errado. 

Outros pensam que as questões morais não dependem tanto das opiniões pessoais, sendo antes algo estabelecido por consenso no seio de cada sociedade. Assim, diferentes sociedades ou culturas têm diferentes códigos morais e diferentes critérios para distinguir o que é moramente certo do que é moralmente errado. As noções morais não passam, pois, de convenções sociais, que mudam consoante a sociedade ou cultura em causa.

Mas também há quem defenda que as questões morais não dependem dos sentimentos de cada um nem de quaisquer convenções sociais, defendendo que tais noções vêm de Deus. Para essas pessoas, é Deus quem decide de uma vez por todas o que é o bem e o que é o mal, oferecendo-nos critérios fixos e universais para distinguir o que é moralmente certo do que é moralmente errado. Sem Deus não saberíamos distinguir o bem do mal e viveríamos no «reino do vale tudo», dizem.

Outros ainda pensam que não é Deus quem estabelece o que é bom ou mau, apesar de haver critérios universais para distinguir o que é moralmente certo do que é moralmente errado. Estes dizem que a distinção entre o bem e o mal é uma questão racional; é uma questão de reflectir cuidadosamente sobre as coisas e nos deixarmos guiar pela nossa razão natural para chegar a conclusões racionalmente justificadas sobre o que devemos ou não devemos fazer.

Recapitulando, qual é, então, o fundamento ou a natureza da moral?

1. São os sentimentos de cada um? Tem a moral uma natureza emocional e subjectiva?
2. É a sociedade? Tem a moral uma natureza social?
3. É Deus? Tem a moral um fundamento divino ou uma natureza religiosa?
4. É a razão? Tem a moral um fundamento racional?

Haverá outras respostas? Qual é a vossa opinião? Porquê? 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Três perguntas

Foto de Aires Almeida

1. Será que podemos saber que algo é verdade e não acreditar nisso (por exemplo, saber que Neil Armstrong foi o primeiro ser humano a pisar a Lua, mas não acreditar que Neil Armstrong foi o primeiro ser humano a pisar a Lua)?

2. Será que se algo é verdade, alguém tem de saber isso (por exemplo, se for verdade que há extraterrestres inteligentes, então alguém tem de saber que há extraterrestres inteligentes)?

3. Será que alguém sabe mesmo que há (ou que não há) extraterrestres inteligentes?